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Um Syrah do Cerrado

Até o fim do mês, Minas Gerais lança o primeiro vinho fino produzido no coração do Brasil

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

29/02/2008

Pé de Syrah em João Pinheiro: casta tinta é mais adaptada ao Cerrado mineiro (Foto: Divulgação)

O vinho nacional avança em direção ao coração do Brasil. Até o final do mês, mais tardar no início de março, a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) inicia a comercialização do primeiro vinho fino do Cerrado mineiro, talvez de todo o cerrado nacional. Serão postas à venda, por um preço ainda não definido, dez mil garrafas de um tinto da safra 2006 feito com uvas da variedade Syrah provenientes de 5 hectares de vinhedos plantados na fazenda Salvaterra 2, em João Pinheiro, no Vale do Paracatu, noroeste de Minas. É certo que o Cerrado brasileiro já deu vinhos elaborados com uvas americanas e híbridas e produz há tempos uvas de mesa, mas o tinto de João Pinheiro parece ser o primeiro rótulo elaborado com castas da espécie Vitis vinifera, ideais para a produção de vinho, nesse ecossistema do país. Com 12,5% de álcool natural, sem qualquer passagem por madeira, o tinto apresenta muita cor e baixa acidez, características normalmente associadas a vinhos produzidos em regiões quentes. “Ele é a expressão do terroir da região”, diz Murilo de Albuquerque, enólogo da unidade da Epamig em Caldas, sul de Minas, que coordenada a parceria público-privada com os proprietários da fazenda. “Não se trata de um vinho de guarda, mas sim para ser consumido nos próximos três ou quatro anos.”

Atividade por ora basicamente experimental e de pesquisa, a elaboração de vinhos no paralelo 17° sul, onde se encontra a Salvaterra 2, guarda semelhanças com o que é feito comercialmente no Vale do São Francisco, no semi-árido do Nordeste, no paralelo 8° sul. A exemplo do que ocorre na região de Petrolina/Juazeiro, na divisa de Pernambuco com a Bahia, a vinha necessita de irrigação para se desenvolver em João Pinheiro – o rio Paracatu e o córrego Tapera lhe fornecem água – e seu ciclo vegetativo tem de ser alterado a fim de se empurrar a colheita para os meses mais frescos e com menos chuvas (entre junho e julho). Portanto, em vez de fazer a vindima durante o úmido verão, como é praxe no sul do país e em quase todas as zonas vitícolas do mundo, a uva do Cerrado mineiro é colhida no meio do ano. “Podemos ter mais de uma safra ao ano, como no Nordeste, mas optamos por fazer apenas uma colheita para termos fruta de melhor qualidade”, diz o empresário Danilo Meth, do Rio de Janeiro, um dos sócios da Salvaterra 2, que iniciou o projeto de vitivinicultura com a Epamig em 2003.

Comparado ao semi-árido nordestino, o Cerrado mineiro apresenta um clima ligeiramente mais ameno: ali chove mais do que no Vale do São Francisco (média anual superior a 1400 milímetros contra 550/600 milímetros) e as temperaturas médias anuais são um pouco mais baixas (22,5°C em João Pinheiro contra cerca de 26°C na zona de Petrolina). Embora intenso, o calor no noroeste de Minas é menor do que às margens do Velho Chico provavelmente por dois motivos: a maior distância em relação ao Equador e maior altitude local (a altitude em João Pinheiro é de 760 metros contra uma média de 350 metros na zona de Petrolina). Entre maio e julho, quando chove apenas 36 milímetros no Cerrado mineiro, as temperaturas mínimas na região chegam a menos de 14° C e as máximas não alcançam os 29°C. São temperaturas altas, sem dúvida, mas que não chegam a lembrar as de Petrolina e Juazeiro. “Temos uma boa amplitude térmica, de cerca de 15° C, entre o dia e a noite nos meses que antecedem a colheita, condições que favorecem a obtenção de uvas com boas características para elaborar vinho”, comenta Albuquerque. Em termos de solos, o Cerrrado mineiro lembra, em linhas gerais, as condições do semi-árido – terrenos pobres e arenosos, com boa drenagem, traços que favorecem o cultivo da uva para vinhos – e topografia igualmente plana.

A viticultura em João Pinheiro – enorme município mineiro, com mais de 10 mil quilômetros quadrados, que está mais perto de Brasília (400 quilômetros) do que Belo Horizonte (500 quilômetros) – começou depois que o cultivo de uma fruta, o maracujá, não vingou no início desta década na Salvaterra 2. Meth e seu sócio Paulo Velloso pensaram então em testar o plantio de uvas viníferas, igualmente uma planta trepadeira como o maracujá, nos hectares que eram dedicados ao cultivo que não dera certo. “Procurei na internet quem estava pesquisando o cultivo de uvas finas em Minas e encontrei o Murilo da Epamig”, conta Meth. “Ele nos visitou, estudou a área e começamos a parceira.” Em 2003, o vinhedo começou a ser plantado, com mudas importadas. Devido ao seu caráter pioneiro de projeto científico, a produção de uvas finas no Cerrado mineiro é um campo de provas. Ali a Epamig testa diferentes porta-enxertos, três formas de condução de videira (espaldeira, latada e o sistema de cortina dupla, o GDC) e distintas cepas tintas e brancas.

Por ora, a variedade de uva que mais se adaptou ao Cerrado mineiro e às alterações impostas ao ciclo reprodutivo da videira – submetida anualmente a duas podas, uma em julho/agosto e outra em janeiro-fevereiro – foi a Syrah. Não por acaso essa cepa, também chamada de Shiraz, é a variedade tinta mais aclimatada às margens do Rio São Francisco. A tinta espanhola Tempranillo não se deu bem em João Pinheiro, e o mesmo aconteceu com as brancas Marsanne e Roussanne, ambas originárias do Vale do Rhône, na França. “Vamos testar agora a Sauvignon Blanc na região”, diz Albuquerque.

Por ser uma atividade ainda experimental e em pequena escala, a produção de uvas para vinho no Cerrado mineiro ainda não justifica a construção de uma vinícola na região. No caso do primeiro vinho fino da parceira Epamig/Salvaterra 2, as uvas foram transportadas cerca de mil quilômetros em caminhão refrigerado de João Pinheiro até Caldas, onde ficam os enólogos da empresa mineira de pesquisa agropecuária. No entanto, se a vitivinicultura se mostrar realmente promissora no Cerrado mineiro, os donos da fazenda não descartam investir mais no setor. “Ficamos realmente surpresos com a qualidade do nosso vinho”, comenta Meth. Espaço para ampliar o plantio de uvas na fazenda não seria muito difícil de encontrar. Com mais de 2 mil hectares de área total, a Salvaterra 2 se dedica a várias atividades: explora a pecuária; cultiva milho, soja e pimentão; planta cana-de-açúcar, a partir da qual faz 100 mil litros de sua própria cachaça, a SalvaGeraes. Faz tudo isso e ainda aposta na fruticultura irrigada de mamão, goiaba, limão e uvas viníferas.

Para os pesquisadores da Epamig, o surgimento do “vinho do Cerrado” dá seqüência ao trabalho de descoberta de novas áreas com vocação para a vitivinicultura e de revitalização das antigas zonas produtoras. “Com o vinho do Cerrado, estamos validando o cultivo de uvas finas em uma região que não tinha viticultura”, comenta Albuquerque. O vinho (comum) de Minas está associado à região de Andradas, onde também está a unidade da Epamig de Caldas, mas os pesquisadores em viticultura e enologia do Estado estão tentando criar produtos, baseados nas uvas viníferas, em outras zonas. Dessa forma, estão investindo no desenvolvimento de uvas finas para vinho na zona cafeeira (em Três Corações e Cordislândia) e no entorno da Estrada Real.

*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de fevereiro do jornal Bon Vivant

One thought on “Um Syrah do Cerrado

  1. Rodrigo Mendes

    Em baixas latitudes devemos procurar a maior altitude possivel. Sou um curioso da vinicultura e eu estimo que seria uma grande aposta tentar a cultura da vitis vinifera em região de cerrado com menor índice de chuvas e na maior altitude possível, algo como a região do planalto central.
    Mais precisamente Alto Paraíso em Goiás. Vejam o clima e a amplitude térmica e me digam se não estou certo:
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Alto_Paraíso_de_Goiás

    Creio que no futuro ainda vão descobrir o potencial das terras altas do planalto central (acima de 1200ms) para o plantio de boas cepas para produção de vinho.
    Acredito que nesta região, com alguma irrigação para os meses de seca crítica e em terrenos escolhidos conforme a variedade de uva, podemos ter boas surpresas. Quem sabe um dia não tenhamos um vinho do Planalto Central ou até de Brasília?

    Quem quiser investir e quiser minha ajuda, pode me chamar.

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