To blend or not to blend
A despeito da badalação em torno dos varietais, os vinhos de assemblage continuam em alta em todo o mundo
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
31/03/2009
Existem muitas oposições, em geral intermináveis, entre os apreciadores de vinho. Bordeaux ou Borgonha? Vinho do Velho Mundo ou Novo Mundo (de fora da Europa)? Tinto ou branco? Outra dessas contendas sem fim coloca em campos distintos os chamados varietais, vinhos produzidos exclusiva ou majoritariamente com uma variedade de uva, e os denominados vinhos de assemblage, constituídos de blends, misturas, de vinhos elaborados em geral com mais de uma cepa, ou, com menor frequência, com fruta proveniente de regiões distintas ou até mesmo de safras diferentes.
Os varietais costumam estampar em seu rótulo o nome de sua uva principal (Cabernet Sauvignon, por exemplo) e estão mais associados à produção vinícola do Novo Mundo, embora hoje não faltem exemplos dessa categoria vindos da Europa. Com menor frequência, o consumidor encontra no mercado vinhos bivarietais ou trivarietais, cujas etiquetas trazem o nome de duas ou até três uvas que fazem parte de sua composição (Cabernet/Shiraz ou Grenache/Shiraz/Mourvèdre, como fazem os australianos). Na verdade, esses bi ou trivarietais também podem ser chamados de vinhos de assemblage ou, para usar um jargão dos enólogos de língua portuguesa, de vinhos de corte (blend).
De acordo com a legislação de cada país, os vinhos varietais, embora declarem apenas o nome de sua uva principal, também podem conter uma pequena porção de vinhos de outras cepas, na maioria dos casos nunca mais do que 25% do blend, quase sempre bem menos do que isso. A legislação também permite que seja misturado em pequena quantidade vinhos de outras safras que não a declarada no rótulo. Ou seja, muitas vezes a oposição entre vinhos varietais e vinhos de corte é falsa e artificial e se dá mais por razões mercadológicas do que concretas. É difícil precisar, mas uma quantidade não desprezivel dos vinhos vendidos e percebidos pelo mercado como varietais ou elaborados apenas com uma uva são, a rigor, também um blend.
Historicamente, os europeus tendem a privilegiar nos rótulos de seus vinhos a origem geográfica das uvas e não o nome das variedades usadas para elaborar a bebida. Vendem um Borgonha ou um Barolo em vez de um Pinot Noir ou Nebbiolo. A estratégia, consagrada especialmente pelo sistema legal que rege as denominações de origem francesa, as famosas AOCs, é pouco informativa ao consumidor moderno. Muitos amantes dos vinhos hoje em dia gostam de saber que castas entraram na elaboração do líquido engarrafado que estão bebendo. Quem é fanático por um Borgonha, por exemplo, sabe que os tintos da região são feitos apenas com a Pinot Noir e os brancos somente com a Chardonnay. Quer dizer, os borgonhas podem ser vistos como vinhos varietais, embora muito raramente tragam o nome de suas uvas nos rótulos.
Mas os Borgonhas são uma exceção. Na grande maioria das regiões francesas e européias, predominam vinhos de corte, ainda que o fato desses vinhos serem (ou poderem ser) um blend de distintas uvas nem sempre seja muito divulgado. O assemblage mais famoso e imitado com uvas tintas é o chamado corte bordalês, em que a estrutura e a longevidade da Cabernet Sauvigon se casam tão bem com a maciez e a precocidade da Merlot. Outro blend mundialmente conhecido e copiado é o champanhe, apoiado na tríade Pinot Noir, Pinot Meunier e Chardonnay. A versão tinta dos Châteauneuf-du-Pape, a mais renomada denominação de origem do sul do Rhône, no sul da França, pode conter até 14 variedades de uvas. Pouca gente se dá conta, mas muitos vinhos associados a apenas uma uva, como os Rioja, na Espanha, ou os Chianti, na Itália, também podem ser blends. A Tempranillo costuma ser a base dos Rioja, mas a Garnacha, a Mazuelo e a hoje revalorizada Graciano também podem entrar na mistura. Isso sem falar na Cabernet Sauvignon. É impossível dissociar os populares Chianti da Sangiovese, a uva mais plantada na Itália, mas a tinta Canaiolo, a branca Malvasia e variedades francesas (Cabernet Sauvigon, Merlot, Syrah) podem compor uma pequena parte de seu blend final.
A lógica de misturar vinhos de uvas diferentes, eventualmente de distintas safras ou até vinhedos (lugares) diversos, é obter uma bebida de melhor qualidade, mais equilibrada e, se possível, mais complexa. O todo, o vinho final, deve ser melhor do que suas partes. Uma uva tenta suprir as limitações e os pontos fracos da outra que entrou no blend. Caso contrário, não faria sentido adotar tal procedimento. Dentro dessa lógica, os produtores lançam mão de um número quase infinito de possibilidades. Adicionam um pouco das aromáticas uvas da família Moscato para perfumar ainda mais um vinho branco. Domam os ferozes taninos da Tannat com um pouco de Merlot, como fazem os uruguaios. Misturam a Sauvignon Blanc à robusta Sémillon para acrescentar frescor e vivacidade. A predileção por vinhos de corte também reduz os riscos do vitivinicultor e o ajuda na difícil tarefa de manter um vinho com um qualidade média mais ou menos constante. Como a Cabernet Sauvignon amadurece semanas depois da Merlot, para ficar no exemplo clássico de Bordeaux, as chances de que um ano seja uma safra ruim para as duas variedades é menor. Misturar, de forma ilegal, vinhos provenientes de uvas, safras ou regiões de menor prestígio (cujo valor no mercado é mais baixo) a vinhos de maior renome, que normalmente alcançam preços mais altos, é uma das fraudes mais antigas que existem. Mas isso é assunto para outra hora.
Abaixo alguns exemplos de vinhos de assemblage elaborados em algumas partes do mundo:
Bordeaux – Aqui os tintos, desde um humilde Bordeaux genérico de dois euros até um mítico e caro châteaux, são sempre blends. Expressões simples ou rebuscadas do chamado corte bordalês, uma mistura que tem na Cabernet Sauvignon e na Merlot seus componentes principais, às vezes complementada por porções de Cabernet Franc e Petit Verdot. A Cot (Malbec) e a Carmenère também podem entrar no corte final do vinho. Em algumas sub-regiões de Bordeaux, a uva predominante no blend é a Cabernet Sauvignon. Esse é o caso dos vinhos do Médoc. Em outras, como em Pomerol, a Merlot é uva mais importante. Nos brancos secos da região, bem menos famosos que os tintos, o corte é composto basicamente pela Sauvignon Blanc, que dá frescor e tem boa acidez, e a Sémillon, uva mais rica e redonda. Às vezes, um pouco da aromática Muscadelle também pode ser adicionada ao blend. O Sauternes, o grande vinho doce de sobremesa de Bordeaux, também pode ser uma mistura dessas três uvas, sobretudo da Sémillon, bastante atacada pela podridão nobre que lhe confere o aroma típico, e Sauvignon Blanc. O corte bordalês, sobretudo para os tintos, é imitado em todo o mundo. Nos Estados Unidos, os vinhos que o adotam podem ostentar a designação Meritage.
Champagne – Talvez seja o caso mais radical de vinho de assemblage por excelência. A imensa maioria dos champanhes explora a idéia do blend em sua plenitude e todos os detalhes dos vinhos que compõem sua cuvée final não costumam ser divulgados. Os champanhes básicos dos produtores, que representam o espumante típico da casa, não ostentam a safra em seu rótulo (são um mistura de vinhos de várias safras, das boas e de outras nem tanto) tampouco as uvas que entram em sua composição. Em geral, os champanhes são um blend de três uvas: das tintas Pinot Noir e Pinor Meunier e da branca Chardonnay. Cultivada majoritariamente na área denominada Montagne de Reims, a Pinot Noir costuma ser descrita como a responsável pela estrutura e profundidade de fruta do espumante. Mais leve e oriunda em grande medida da zona conhecida como Côte des Blanc, a Chardonnay empresta elegância ao blend, além de ter uma boa capacidade de envelhecimento. A Pinot Meunir, que não goza de muito prestígio, é um pouco mais ácida do que a Pinot Noir e amadurece antes dela. Cada produtor usa proporcões diferentes dessas variedades, de acordo com suas possibilidades ou aspirações estilísticas. A Taittinger usa uma maior proporção de Chardonnay em seus champanhes, mais delicados. A Bollinger faz champanhes mais encorpados, nos quais predomina a Pinot Noir. A exclusivíssima Krug, que fermenta seus vinhos em pequenas barricas de cavalho, mistura champanhes de no mínimo seis safras distintas em sua Grande Cuvée. Há quem diga que um champanhe pode ser elaborado com mais de uma centenas de vinhos distintos, oriundos de diferentes uvas, safras e/ou localidades. A afirmação é possivelmente um exagero de marketing, mas misturar vinhos é uma especialidade da indústria do champanhe. Aliás, da indústria dos espumantes em geral, visto que a dupla Chardonnay/Pinot Noir está presente em espumantes feitos em várias partes do mundo.
Châteuneuf-du-Pape – Produzido nos arredores de Avignon, no sul do Vale do Rhône, sul da França, onde a corte papal se instalou no século XIV, esses robustos, alcoólicos e densos vinhos, em sua grande maioria tintos, podem ser elaborados com até 13 uvas distintas. Quase ninguém usa todas essas variedades em seus produtos (o Château de Beaucastel é uma exceção) e há até quem faça vinhos com apenas uma cepa. Com sua fruta doce e densidade, a Grenache é a uva principal da região. Entre as tintas também são autorizadas no blend a Mourvèdre, a Syrah (chamada Shiraz em algumas partes do Novo Mundo e que empresta aromas de especiarias ao corte), Cinsaut, Muscardin, Vaccarèse, Picpoul, Terret Noir e Counoise. Entre brancas, as uvas permitidas são Grenache Blanc,Clairette, Bourboulenc, Roussane e Picardan.
Vinho do Porto – Um caso muito interessante de vinho fortificado cujo blend, em muitos casos, se inicia já nos vinhedos. Num velho parreiral do Douro, no Norte de Portugal, onde se elabora o vinho do Porto, é possível encontrar dezenas variedades de uvas plantadas misturadas, lado a lado, formando um vinhedo misto. Às vezes, nem mesmo a identidade das uvas chega a ser definida pelo produtor. Não é à toa que mais de 80 cepas podem ser usadas para elaborar os variados estilos de Porto. Entre as tintas, as mais renomadas são a Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz (Tempranillo), Tinta Barroca e Tinto Cão. Para a versão branco do Porto, elaborada em bem menor quantidade, os blends tendem a se concentrar nas uvas Gouveio, Malvasia Fina e Viosinho.
Brasil – Embora não faltem vinhos básicos que sejam blends, uma parte considerável dos vinhos nacionais de maior prestígio, sobretudo os tintos, são fruto das técnicas de assemblage. A Miolo, por exemplo, elabora muitos tintos inspirados no corte bordalês, à base de Cabernet Sauvignon e Merlot (Lote 43, Cuvée Giuseppe, RAR). Seu Castas Portuguesas, feito com uvas da região da Campanha Gaúcha, perto do Uruguai, é um corte de três uvas lusas: Touriga Nacional, Alfrocheiro e Tinta Roriz. Um dos melhores vinhos da Salton, o Talento 2005, também é um blend de três uvas, Cabernet Sauvignon, Merlot e Tannat. A pequena Pizzato, que fez fama entre os conhecedores com seus varietais de Merlot, hoje tem como produto top da vinícola o Concentus, também um corte de Merlot, Tannat e Cabernet Sauvignon. Muitas vinícolas brasileiras (e do Novo Mundo) estão seguindo o caminho dos blends em seus produtos de maior preço. No caso dos espumantes brasileiros, elaborados em sua maior parte para consumo no auge de seu frescor e jovialidade, muitos rótulos também acrescentam ao blend de Pinot Noir e Chardonnay a uva branca Riesling Itálico. Alguns produtores acreditam que essa cepa, de leves notas cítricas e que não dá vinhos de elevado grau alcoólico, adiciona um toque característico ao espumante nacional.
Esta matéria foi originalmente publicada na edição de março de 2009 da revista Bon Vivant
- Um vinho burocrático (parte II)
- O primeiro vinho medicinal
Adorei o texto. Além da aula sobre blending desperta o leitor para a pesquisa de outros itens. Particularmente vou buscar mais informações sobre os Châteuneuf-du-Pap.e
Uma aula sobre blending. Muito bem escrito. Direto e claro.
Parabens