Tempo quente nos vinhedos
Com o aquecimento global, as principais zonas vitícolas poderão ser obrigadas a mudar o perfil de seus vinhos nas próximas décadas
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
16/04/2007
O tema do momento, o aquecimento global, também chegou aos vinhedos. Numa Terra que deverá se tornar entre 1,8° e 4°C graus mais quente até o fim deste século, segundo o cenário mais otimista divulgado em fevereiro passado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), o que acontecerá com a produção de vinho no mundo? Por ora, a única resposta segura é que a viticultura, ao contrário do urso polar, não corre nenhum risco de desaparecer. Mas a geografia do vinho deverá sofre mudanças nada desprezíveis nas próximas décadas se o termômetro continuar subindo.
Mais pragas poderão ameaçar os vinhedos devido ao aumento do calor. A irrigação poderá se tornar uma prática quase obrigatória em zonas quentes, até mesmo nos países europeus que hoje proíbem ou limitam esse expediente. O início da colheita será cada vez mais cedo. Novas zonas de produção do fermentado de uva, hoje situadas em áreas ainda muito frias para a exploração em grande escala da videira, serão provavelmente incorporadas ao mapa da viticultura global, como o sul da Inglaterra, onde o aumento do efeito estufa é o principal patrono da nascente indústria local de espumantes. Algumas das atuais áreas ocupadas por vinhas poderão ter de mudar sua vocação agrícola, como as porções mais quentes da Califórnia ou o sul da Península Ibérica, que correm o risco de se tornar cálidas demais para o cultivo da videira, pelo menos daquela destinada a vinhos de qualidade. Um estudo divulgado no ano passado afirma que, se o aquecimento global não for freado nas próximas décadas, menos de um quinto das áreas dos Estados Unidos hoje consideradas ideais para a produção de vinhos de alta qualidade ficarão quentes demais (terão muitos dias com temperaturas acima dos 35 C°) e impróprias para a fabricação de rótulos de primeira linha até o final do século 21.
No entanto, talvez mais do que perder ou ganhar zonas vitícolas, o mundo dos tintos e brancos poderá passar por grandes mudanças no interior de suas atuais áreas produtoras caso os modelos climáticos que saem dos computadores dos cientistas estejam realmente certos. Num planeta mais quente, boa parte dos vinhateiros poderá ter de tomar algumas decisões radicais nas próximas décadas. A mais difícil delas, sobretudo para os franceses e os produtores do Velho Mundo, muito apegados à noção de terroir e avessos a mudanças, será escolher entre trocar seu vinhedo de lugar ou alterar o perfil das cepas que compõem seu parreiral (e, por conseqüência, o estilo de seu vinho). Ou ainda ter de recorrer a truques tecnológicos para fazer o melhor vinho possível num mundo com alguns graus Celsius a mais.
Imagine o seguinte cenário. Estamos em 2100. Os vinhedos da região de Champagne – que no início do século 21 eram os mais setentrionais da França, pois estavam situados no paralelo norte 49, numa zona fria em que a uva normalmente penava para amadurecer – se tornaram tão tórridos que não dá mais para plantar Pinot Noir, Pinot Meunier e Chardonnay. O clima da Champagne agora é bom para Syrah e Grenache, cepas de zonas quentes. O que o champenois de Reims ou Épernay deve fazer para se manter um vigneron no século 22? Recorrer às uvas do sul (e do Sol) e ficar em sua amada terra, talvez produzindo tintos sem borbulhas, ou fazer as malar e ir para Kent ou Sussex, na Inglaterra, as novas mecas dos espumantes?
É claro que a situação acima, pintada em tintas um pouco fortes, não passa, por ora, de uma hipótese. Ela pode nunca vir a acontecer. O clima pode não esquentar tanto assim e, ainda que isso ocorra, sempre se pode argumentar que novas práticas viticulturais e a tecnologia humana vão impedir mudanças radicais no perfil das regiões produtoras de vinhos. De qualquer forma, o aquecimento global deverá provocar algumas mudanças bastante perceptíveis nos vinhedos. Ou melhor, já está provocando desde a segunda metade do século passado, embora essas alterações tenham passado quase desapercebidas por que foram, até agora, muito mais benéficas do que prejudiciais à viticultura.
De acordo com um megaestudo do climatologista Gregory Jones, da Southern Oregon University (Estados Unidos), a temperatura média durante o período de crescimento da videira (entre abril e outubro no hemisfério norte e de outubro e abril no hemisfério sul), aumentou 1.3°C em 27 das mais renomadas regiões vitícolas do mundo entre 1950 e 2000. A elevação de temperatura, no entanto, não foi uniforme. Das áreas estudadas, as menos afetadas estavam sempre abaixo do Equador (Chile, Austrália e África do Sul). Com elevações da ordem de 2,5°C (ou mais) registradas na segunda metade do século passado, a Península Ibérica, o sul da França e partes dos estados norte-americanos de Washington e da Califórnia foram as zonas em que houve maior nível de aquecimento. Jones estima que, durante a segunda metade do século passado, a faixa geográfica do globo favorável à viticultura (com temperatura média entre 10° e 20°C) moveu-se entre 80 e 240 quilômetros no sentido dos pólos.
O calor extra proporcionado pelo aumento do efeito estufa entre 1950 e 2000, que se tornou mais perceptível a partir dos anos 1980 e sobretudo no hemisfério norte, foi, em geral, uma benção para os viticultores. Com mais sol, e dotados de uma tecnologia de produção sem paralelo na história da enologia, a tarefa de amadurecer as vinhas ficou mais fácil em áreas de clima temperado, como Bordeaux, e até em zonas frias, caso dos vinhedos da Alemanha. Produzir vinhos mais concentrados, redondos, com mais álcool, num estilo que agrada o gosto médio do consumidor, virou uma tarefa menos árdua. Portanto, se houve um aquecimento global na segunda metade do século passado, ele foi positivo à indústria do vinho. “Com o vinho, podemos sentir as mudanças climáticas”, afirma Jones, que é filho de um viticultor do estado do Oregon. “Bordeaux hoje consegue amadurecer consistentemente suas uvas.” O problema é que, se as mudanças climáticas do passado foram, em linhas gerais, boas para a viticultura, as do futuro provavelmente não serão tão benignas. Para sobreviver, o vinhateiro terá de se adaptar aos novos tempos.
Essa foi uma das conclusões de um colóquio científico a respeito dos prováveis impactos do aquecimento global sobre os vinhedos, realizado entre 28 e 30 março passado na Universidade da Borgonha, em Dijon (França), numa das áreas mais nobres da vitivinicultura mundial. Se as previsões sobre o clima futuro da Terra recém-divulgadas pelo IPCC, painel científico ligado às Nações Unidas, se materializarem, Jones, que esteve no encontro de Dijon, estima que, por conta das mudanças climáticas, a faixa geográfica ideal para a viticultura vai migrar ainda mais para as latitudes extremas, algo entre 280 e 500 quilômetros em direção aos pólos até o fim deste século. “Na Europa, o limite setentrional da viticultura se estendia em 1946 da Bretanha à Ucrânia, passando por Paris e Berlim. Até 2100, ele deverá chegar à Escandinávia”, diz o francês Bernard Seguin, coordenador das pesquisas de clima do Institut National de la Recherche Agronomique (Inra), que também participou do evento científico na Borgonha.
De acordo com projeções feitas por modelos computacionais que tentam antecipar como será o clima em 2049, o aumento médio da temperatura nas principais zonas vitícolas do globo será de 2°C durante o período de crescimento da videira. Quase o dobro do que ocorreu na segunda metade do século passado. Uma elevação de 2°C pode parecer pouco, mas esse aumento de temperatura é suficiente para mudar o perfil das cepas que melhor se adaptam a uma região. Por exemplo, a Pinot Noir encontra seu clima ideal em regiões que apresentam temperatura média, grosso modo, entre 14° e 16°C durante o período de crescimento da planta. No caso da Cabernet Sauvignon, os valores ideais oscilam entre 16° e 19,5°C, segundo levantamento do climatologista da Southern Oregon University. Pode ser um exagero, mas alguns cientistas acham que o verão de 2003 na Europa, onde houve ondas de calor fora de normal que obrigaram os vinhateiros a irrigar suas plantas e produzir vinhos sem sua tipicidade habitual, foi apenas um prenúncio do que será o aquecimento global nas próximas décadas.
Ir para cima, seja em termos de latitude ou de altitude, é um dos caminhos para o viticultor literalmente fugir das mudanças climáticas. Ensaios nesse sentido já estão em curso em algumas partes do globo. Os meios de comunicação ingleses noticiam com certa freqüência o interesse, ainda meio envergonhado, de algumas casas de champanhe em conhecer a produção de espumantes da região de Kent e Sussex, onde até o solo, do tipo calcário, seria parecido com o da Champagne. Há quem especule que, em breve, algum produtor de champanhe vai se associar ou comprar um vinhedo na Inglaterra. Na África do Sul, alguns produtores estão tomando as escarpas até há pouco ocupadas pelas macieiras em busca de zonas menos tórridas. Na Espanha, Miguel Torres, um dos mais renomados vinhateiros locais, estuda a implantação de vinhedos nas partes baixas dos Pirineus, na divisa com a França. Enfim, a perspectiva de um maior aquecimento global faz o meio do vinho se mover, talvez ainda não da forma que deveria. Os mais vulneráveis são os que hoje estão em zonas já tidas como bastante quentes para a viticultura.
Como fica o Brasil nessa história do aquecimento global? É difícil prever os efeitos do aquecimento global na vitivinicultura nacional voltada para a produção de vinhos finos, concentrada basicamente na Serra Gaúcha. Isso porque só agora começam a surgir os primeiros trabalhos científicos mais consistentes tentando prever como será o clima do Brasil – o mais correto é dizer os climas do Brasil devido à imensidão do país – com o aumento do efeito estufa ao longo do século 21. Um estudo do meteorologista José Antônio Marengo, do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), construiu cenários do que pode acontecer com o clima nas cinco grandes regiões do país daqui a 50 ou 70 anos. É um trabalho de ponta, mas de caráter ainda genérico, que serve de matéria-prima para futuros estudos aprofundados sobre os efeitos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade, a saúde, a agricultura e a economia do país. No caso da região Sul, onde se concentram os vinhedos de melhor qualidade do Brasil, as simulações feitas em computador pelo Inpe apontam uma elevação, num cenário otimista, de 1° a 3°C na temperatura, com extremos de chuva e enchentes e picos de calor. Num cenário pessimista, o aumento de temperatura fica entre 2° a 4°C, com extremos de chuva, enchentes e picos de calor.
Para o pesquisador Jorge Tonietto, da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, especialista em zoneamento climático para viticultura, um possível aumento da temperatura nos vinhedos é preocupante. “Uma elevação de 3°C na temperatura em 50 anos muda tudo, é uma porrada”, diz Tonietto. No entanto, a Serra Gaúcha, por não ser hoje uma zona de clima quente, ainda está longe de atingir o limite térmico para a viticultura, o que, em tese, garante alguma margem de manobra. Na questão das chuvas, é bastante complicado fazer alguma previsão mais detalhada. “Tudo depende de quanto poderá chover a mais e da época do ano em que virá essa hipotética água extra”, pondera Tonietto. Um pouco de chuva a mais fora do período da colheita pode não trazer grandes problemas ou ser até benéfico. Mas mais água nos meses de verão, quando os índices pluviométricos na Serra Gaúcha já não são baixos, pode representar um grande desafio à viticultura local. Mas o clima é algo complexo de se entender (muitas variáveis, algumas desconhecidas pelo homem, influem em sua constituição) e, como se disse, mais estudos a respeito das possíveis conseqüências do aquecimento global sobre os vinhedos são necessários.
*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de abril de 2007 do jornal Bon Vivant
- Muito além dos altos impostos
- Os vinhos artesanais de Tormentas