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Riojas de outros tempos

Herdeiro da Viña Tondonia fala sobre seus antigos métodos de produção, que geram vinhos longevos num delicioso estilo passadista

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

20/10/2007

Julio César Lopez de Heredia: “Nossos vinhos não são melhores ou piores (do que os outros), mas diferentes. Se abandonássemos esses processos antigos, nossos vinhos perderiam o diferencial” (Foto: Gladstone Campos/Divulgação)

Dona de 170 hectares de vinhedos na Rioja Alta, a zona mais nobre da Rioja, a mais importante área vinícola da Espanha, a R. López de Heredia Viña Tondonia é uma vinícola que faz questão de dizer que parou no tempo. Literalmente. Fundada em 1877 por Don Rafael López de Heredia y Landeta – um filho de imigrantes bascos nascido no Chile, mas que retornara à Espanha aos 14 anos e aprendera a elaborar vinhos com os franceses de Bordeaux –, a bodega ainda segue os mesmos métodos de 130 anos atrás para moldar seus tintos, brancos e rosados. Pode haver algum exagero nessa afirmação, típica do marketing adotado por todo e qualquer produtor, mas é inegável que os elegantes e ligeiramente oxidados produtos da Viña Tondonia têm um pé em outro tempo. Ainda mais no mundo de hoje, onde a regra são tintos jovens, escuros e concentrados, com aromas de fruta madura, muita madeira tostada e álcool em excesso. Na Viña Tondonia, não há tanques de aço inoxidável para fermentação, mas sim velhas pipas de madeira. Todas as linhas de vinho da casa, mesmos os básicos Viña Cubillo Crianza (tinto) e Viña Gravonia Crianza (branco), envelhecem por, no mínimo, três anos em barricas usadas de carvalho norte-americano. No caso dos vinhos top da casa, o Viña Tondonia Gran Reserva, o período de amadurecimento se estende por seis anos na madeira e outros tantos na garrafa. São vinhos realmente diferentes do grosso da produção atual e muito longevos.

Nesta entrevista, concedida em São Paulo durante evento promovido pela importadora Vinci, que representa no Brasil a Viña Tondonia, cujos rótulos custam aqui entre US$ 50 e US$ 180, o diretor gerente da bodega, Julio César Lopez de Heredia, fala da história da vinícola e do estilo deliciosamente antigo de seus vinhos, em especial dos brancos com mais de uma década de vida.

Como começou a história da Viña Tondonia?

Somos a bodega mais antiga de Rioja que ainda pertence à família fundadora e a terceira mais antiga da região, depois da Marqués de Riscal e da Marqués de Murrieta. Começamos no ano de 1877. Meu bisavô, Rafael, fundador da vinícola, nasceu em Santiago, no Chile. Era filho de imigrantes bascos e, quando tinha 14 anos, voltou, com seu irmão Fernando, à Espanha para estudar com os padres jesuítas. Acontece que meu bisavô entrou para o exército carlista e participou da terceira guerra civil (1872-1876) contra os liberais. Eles perderam e meu bisavô se exilou na França, onde começou a ter contato com a elaboração de vinhos antes de voltar para a Espanha. A Rioja realmente começa sua história como elaboradora de vinhos de qualidade a partir do ataque da filoxera aos vinhedos franceses em meados do século XIX (que levou muitos negociantes de vinhos daquele país a se abastecer do outro lado dos Pirineus). A Rioja, portanto, se desenvolve na elaboração de vinhos para atender ao mercado francês. Somos, digamos, alunos dos elaboradores franceses. A característica fundamental de nossa casa hoje em dia é ter conseguido manter em nossos vinhos o método de produção bordalês introduzido na Rioja em meados do século XIX, Método que naquela época era a enologia moderna. Mantemos, com muito esforço, esse tipo de elaboração. Até 20 anos atrás, éramos uma bodega importante na Rioja em termos de volume. Hoje, não mais. Atualmente produzimos cerca de 700 mil garrafas por ano.

Quantas garrafas de tintos e de brancos?

Cerca 85% de tintos (feitos à base da variedade Tempranillo, com um pouco de Garnacho, Graciano e Mazuelo) e 15% de brancos (a partir das cepas Viura e Malvasia) e rosados, todos vinhos com passagem em madeira. O vinho mais jovem, tanto em tinto como em branco, que elaboramos permanece no mínimo 3 anos em carvalho, muito mais do que exigem as normas da denominação de origem Rioja. Nossa elaboração de vinhos tradicionais tem a ver com a nossa história. Somos a quarta geração da família à frente da bodega – eu e minhas irmãs María José e Mercedes – e temos muito bem documentada nossa história, com cartas e documentos. Meus antepassados eram pessoas bem organizadas.

Em termos de volume, a produção da Viña Tondonia em seus primeiros dias era maior ou menor do que a atual?

A produção inicial da bodega não diferia muito da atual. Nosso bisavô não tinha dinheiro. Comprava uvas e vinhos para envelhecer, estabilizar e mandar para a França. Era um mercado em que se moviam volumes de vinhos. Hoje somos viticultores e nossa família está muito ligada à terra. Temos 170 hectares próprios cultivados com uvas e mais alguns hectares com exploração agrícola (cereal). Usamos o cereal para sanear as parcelas que tinham uvas. Nunca usamos a desinfecção química. Quando arrancamos um vinhedo muito velho, cultivamos um cereal ou uma leguminosa ali para fazer a correção natural do solo e de sua produtividade sem a necessidade de produtos químicos para acelerar esse processo. Somos muito tradicionais também no cultivo da uva. O segredo dos vinhos está na terra e nas uvas. Utilizamos essa metodologia tradicional para obter uvas que não consideramos melhores ou piores do que as dos nossos vizinhos, mas que são as uvas de que necessitamos para elaborar vinhos de forma totalmente natural. Uma matéria-prima sempre muito sã e equilibrada. Isso só se consegue com rendimentos baixos e vinhedos velhos. E sem ser egoísta.

Qual é o rendimento médio dos seus vinhedos?

Hoje em dia a denominação de origem (de Rioja) permite 6, 5 mil quilos por hectare para as variedades tintas e 9 mil para as brancas. Mas nosso rendimento médio é de 5 mil quilos por hectare, às vezes ainda menos do que isso para nossos vinhos brancos. Se queremos elaborar um bom branco Crianza, Reserva ou Gran Reserva (as três categorias principais dos vinhos de Rioja), temos que colher a Viura e Malvasia da mesma maneira que colhemos as tintas: muito maduras, com boa gradação alcoólica. Como se sabe, as variedades brancas são muito mais sensíveis às condições ambientais, às doenças. Para agüentar até a colheita no mês de outubro, temos de manter os rendimentos em níveis muito baixos. Hoje em dia, a idéia geral é justamente o contrário da nossa e muita gente tem um rendimento muito maior nas uvas brancas que nas tintas.

Há alguma razão específica para, ao contrário de tantas vinícolas da Espanha, vocês terem optado por manter a tradição em vez de apostar em vinhos de caráter mais moderno?

Acho que a questão central é que nunca realmente decidimos isso. Nunca chegou um momento em que meu pai, eu ou minhas irmãs expressamos a inquietude de fazer algo distinto. Não mudamos de estilo não por uma questão de imobilidade, mas sim por inércia provavelmente. Além disso, temos também convicção absoluta no produto que elaboramos. Ou seja, não foi por comodidade que não mudamos, mas sim justamente pelo contrário. Para nós, custa um pouco mais manter esse tipo de elaboração de vinho do que a outros produtores. Creio que não teria sido muito complicado para nós termos nos lançado na aventura do vinho moderno, de vinhos mais adaptados ao que o mercado demanda num dado momento. Mas cremos nos vinhos que fazemos.

Qual é a sua formação?

Sou engenheiro agrônomo. Minha irmã María José é licenciada em direito, mas é mestre viticultura e enologia. E minha irmã Mercedes, a pequena, é engenheira agrônoma e enóloga.

É ela quem faz os vinhos?

Sim, mas todos nos ocupamos um pouco dos vinhos, embora cada um saiba com bastante clareza quais são as suas responsabilidades imediatas. As minhas são o trabalho de campo e as obras na vinícola. Estamos em desenvolvimento contínuo. Nossa equipe de trabalhadores conta com carpinteiros e pessoas que sabem trabalhar a pedra. Tudo que construímos na bodega deve estar integrado ao nosso conjunto arquitetônico. Além disso, a pedra permite que obtenhamos as condições naturais para elaborar nosso tipo de vinho. Por sermos uma empresa familiar, eu estou aqui em São Paulo, mas estou pensando nas vinhas.

Como se trabalha o vinhedo para fazer brancos que duram 10 ou 20 anos?

Deve-se cultivar de tal forma que, quando chega o momento da colheita, você está em condição de arriscar um pouco mais, você pode esperar um pouco mais para alongar o ciclo da vinha. Temos de manter, como já disse, os rendimentos baixos e a idade do vinhedo elevada. E selecionar os melhores terrenos para os vinhedos, de preferência não muito férteis, onde a vinha sofre e se equilibra em termos de açúcares e ácidos. Não temos nenhum hectare de vinhedo plantado em espaldeira. Mantemos um sistema de poda bastante tradicional. Isso dificulta a lavoura, que tem de ser muito mais manual. Nunca vou me atrever a dizer que nossas uvas são melhores do que as produzidas em espaldeira ou por outras formas de condução do vinhedo. Elas apenas são as uvas de que necessitamos para produzir nossos vinhos naturais.

Deixar a uva por mais tempo na parreira não reduz a sua acidez, o que, em tese, pode dificultar a produção de vinhos brancos longevos?

No caso dos nossos brancos, nós não buscamos uma acidez tão elevada, como a que se encontra nos brancos jovens e frescos que se consomem hoje em dia, de caráter floral e frutado, sem muita cor e com uma acidez mais marcante. Buscamos um caráter muito mais evoluído e maduro nos nossos brancos, mantendo uma acidez menos pulsante que a dos brancos modernos. No caso dos tintos, ocorre justamente o contrário. Vou simplificar um pouco as coisas, mas hoje o mundo privilegia os tintos mais estruturados, com alta gradação alcoólica, muita concentração de matéria colorante. No entanto, nossos tintos são mais ligeiros no que diz respeito ao álcool. Nunca superam os 12,5% GL e 13%GL. São vinhos mais brilhantes, com cores mais abertas. Não gostamos de chamá-los de mais finos do que outros tintos, pois alguém pode se sentir ofendido com essa afirmação. Mas entendemos que são vinhos muito mais elegantes, agradáveis ao paladar e convidativos para se beber.

Para o consumidor médio de hoje, beber um branco de 10 anos, com cores mais carregadas, não é uma experiência estranha?

Nós, em casa, estamos bebendo brancos da safra de 1957. É verdade que hoje em dia esse tipo de vinho branco é muito desconhecido, talvez sempre tenha sido. Mas não tanto na Rioja. Há 30 anos, muitas bogedas da Rioja faziam esse tipo de vinho. Não era nenhuma exclusividade da casa Lopes de Heredia. Sempre achamos que era um grande vinho. Chegou um momento em que, de tão desconhecidos, mesmo entre os profissionais do vinho e da enologia, esses vinhos velhos, de estilo antigo, começaram a surpreender as pessoas. Tudo é uma questão de desconhecimento. Cremos que, pelo menos no mercado espanhol, o interesse por esse tipo de vinho está voltando. Estamos muito satisfeitos, porque passamos anos muito difíceis elaborando esse tipo de vinho, que custa dinheiro.

Hoje em dia quem é o consumidor dos seus vinhos?

Nosso mercado fundamental é a Espanha, para onde vendemos 80% da produção. No Brasil, estamos desde o ano passado. Acabamos de começar aqui. Estamos muito encantados com o país. Aqui há um interesse extraordinário por vinhos de todo o mundo, com pessoas ansiosas para desfrutar todos os tipos de vinhos. Achamos que temos grandes possibilidades aqui. Trata-se de um mercado jovem, sem preconceitos, disposto a provar tudo. Na Espanha, sempre tivemos um consumidor muito fiel, conhecedor dos vinhos da Rioja, que aprecia a qualidade de nossos produtos. Mas hoje em dia temos também o público jovem como consumidor. Na Espanha, os jovens querem coisas novas. Para a juventude, somos uma novidade.

Quer dizer que a tradição se tornou o novo para os jovens?

Sim. Por fazermos sempre o mesmo, chegou um momento em que praticamente nos tornamos únicos. Somos exclusivos pela escassez do nosso tipo de vinho. Pouquíssimas bodegas fazem esse tipo de vinho e há paladares jovens que buscam coisas que, para eles, são completamente novas. Recebemos sempre muitos visitantes em nossa bodega, mas nunca tantos como hoje. Nos últimos meses, estamos recebendo cerca de 150 pessoas diariamente na bodega. Nesses grupos, o predomínio é de jovens. O que há de bonito no mercado atual de vinhos é que o consumidor pode desfrutar de produtos totalmente distintos para cada tipo de gastronomia, para cada momento ou para cada estado de espírito. Gostamos muito dos nossos vinhos, mas também desfrutamos muito dos vinhos de outras casas que optaram por elaborações mais vanguardistas.

Qual é o papel das barricas de carvalho em seus vinhos?

Temos nossa própria tanoaria. Fazemos nossas barricas, hoje 100% de carvalho americano. Durante a construção da barrica, não adotamos um tratamento muito severo. É uma madeira que permite uma evolução mais lenta dos vinhos. Não fazemos tostados intensos e procuramos renovar lentamente nosso parque de barricas de tal forma que sempre tenhamos uma idade média avançada de nossas barricas. Hoje essa idade média é de 15 anos, mas há barricas de 25 ou 30 anos e também novas. Procuramos um equilíbrio. Enxergamos a barrica como um recipiente (para guardar o vinho). É certo que a madeira é uma ferramenta à disposição do produtor para imprimir um caráter determinado a seus vinhos, mas ela não precisa ser uma ferramenta capital ou fundamental. Provando nossos vinhos, entendemos como um erro quando a madeira se apresenta de forma excessiva ou demasiada. A madeira pode arredondar um pouquinho o buquê e contribuir com um pouco de baunilha no final. Mas sempre com delicadeza. Temos cerca de 16 mil barricas (de 225 litros) na bodega. Também fazemos a fermentação dos nossos vinhos – não só o envelhecimento – em grandes pipas de madeira, com capacidade entre 25 mil e 35 mil litros. Não utilizamos aço inoxidável.

Que safras de vinhos o senhor está vendendo no momento?

Os rótulos Viña Cubillo (tintos) e Viña Gravonia (brancos) são os vinhos mais jovens que fazemos. No momento, estamos no mercado com o Cubillo 2001 e o Gravonia 1995. Da linha Viña Tondonia, estamos comercializando agora os Reserva de 1998 em tinto e de 1988 em branco. E como Gran Reserva a colheita de 1981 em branco e a de 1985 em tinto. Também temos orgulho de ter na bodega uma bonita coleção de vinhos antigos, que não mandamos aos nossos distribuidores, mas que comercializamos na própria bodega. Nosso vinho mais antigo que vendemos na bodega é um tinto Viña Bosconia 1942. É um vinho que só está presente em nossas celebrações.

Qual o preço desse tinto?

Na bodega, custa cerca de 430 euros. Não é tão caro assim quando você pensa que está desfrutando um vinho de 65 anos, embora seja muito dinheiro para se gastar com uma garrafa.

O senhor é contra a tecnologia moderna na enologia?

Não somos contra a tecnologia moderna. O que fazemos é manter o método bordalês de 130 anos atrás. Fazemos isso porque estamos convencidos de que é necessário para alcançar o caráter de nossos vinhos. Volto ao mesmo tema de antes: todo mundo sabe que hoje são elaborados vinhos extraordinários com tecnologias modernas. Nossos vinhos não são melhores ou piores, mas diferentes. Se abandonássemos esses processos antigos, nossos vinhos perderiam o diferencial.

*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de outubro de 2007 do jornal Bon Vivant

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