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Qualidade globalizada

Michel Bettane: grandes vinhos do Novo ou do Velho Mundo pertencem à mesma “família”

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

12/06/2006

Bettane: “Costumo dizer sempre que a oposição entre Novo e Velho Mundo só faz sentido para os vinhos ruins. Cada continente tem defeitos próprios, particulares, aos seus vinhos ruins.” (Foto:Divulgação)

A todos que paravam em seu stand em busca dos ótimos Rieslings e Gewürztraminers da Alsácia, o falante e simpático Etienne Hugel, membro de uma família que desde 1639 produz vinhos em Riquewhir, fazia o pedido, num tom amigável e, ao mesmo tempo, persuasivo: “Prove antes o Gentil 2004”. Diante de tal apelo, que podia ser em francês, inglês ou alemão (Etienne é poliglota), muitos não resistiam e experimentavam o Gentil, o vinho branco mais simples da Hugel & Fils, antes de degustar os produtos mais caros e refinados dessa renomada casa francesa com sotaque alemão. Cenas semelhantes a essa, em que consumidores e produtores internacionais de vinho interagiam de forma descontraída, aconteceram em boa parte dos stands do World Wine Experience 2006, evento promovido no final de abril em São Paulo e no Rio de Janeiro pela divisão de vinhos da importadora paulista La Pastina. Proprietários, enólogos ou representantes de cinqüenta produtores de quinze países, com forte presença de vinícolas da Itália e da França, participaram da iniciativa. Nomes como Roberto Anselmi, da região de italiana de Soave, no Vêneto, e Jean-Pierre Amoreau, dono do Château Le Puy, uma propriedade de Bordeaux que cultiva vinhas pelo método biodinâmico, serviram pessoalmente seus rótulos às cerca de três mil pessoas que passaram pelas edições carioca e paulista do World Wine Experience.

Dois importantes críticos internacionais também estiveram no evento: o italiano Daniele Cernilli, editor do Gambero Rosso, o principal guia de tintos e brancos da Velha Bota, e Michel Bettane, o mais renomado expert em vinhos da França, que recentemente deixou La Revue du vin de France e fundou um site próprio – www.bettanedesseauve.com – com seu amigo e companheiro de trabalho, Thierry Desseauve. Num intervalo das degustações, Bettane, que visitava pela primeira vez o Brasil e, até o momento desta entrevista, havia provado apenas um vinho nacional (um espumante), falou ao jornal Bon Vivant:

O senhor concorda quando dizem que o vinho francês enfrenta uma crise em razão da concorrência internacional?

É claro que sim. O vinho francês faz parte do mundo e deve se medir, se comparar, ao vinho que hoje é feito quase que em todos os lugares do mundo. Ele não está mais sozinho. Os vinhos que são menos bem feitos ou que agradam menos o público internacional não são mais vendidos, ou vendem menos, e a França perde parte do mercado. Isso faz parte das coisas naturais da vida. É evidente. Os vinhos que são julgados melhores serão vendidos e bebidos. E os menos bons, não. Então eu diria que há uma crise para o vinho francês de média e boa qualidade. Será necessário encontrar uma solução. Será difícil do ponto de vista humano porque muitos proprietários não se deram conta dos progressos feitos por outros vinhos no mundo. Eles não têm consciência de que precisam fazer um vinho bem melhor se querem ganhar uma parte do mercado. Quanto aos nossos grand crus, eles nunca foram tão bons como hoje. Não me inquieto muito por eles. Mas talvez 30% ou 40% do vinho francês enfrentam a crise.

A crise não chega aos grandes vinhos?

Não, não. Veja bem, a safra de 2005 em Bordeaux foi um sucesso. Os crus querem aumentar o preço. São os vinhos de qualidade média, corrente, que sofrem com a concorrência – e sofrem com merecimento, diria. Esses vinhos não são bons. O mercado sabe disso. Se eles não são bons, não vejo porque o mundo inteiro seja obrigado a bebê-los.

Por que o francês bebe menos vinhos hoje que no passado?

Constatamos que os países produtores da Velha Europa, como a Itália, a França e a Espanha, apresentam uma tendência de beber um pouco menos de vinho. Bebiam muito e hoje bebem menos. Consumimos hoje cerca 25 litros por ano por pessoa, que é mais ou menos a metade do consumo há 20 ou 30 anos. Mas, em contrapartida, bebemos vinhos de melhor qualidade. Isto é, vinhos mais caros e que ocupam um lugar mais alto na gama dos produtos. Acredito que esse fenômeno vai continuar. Em outros países, ocorre o contrário. Bebe-se mais e mais vinho. Mas a partir de um nível muito baixo.

Qual é sua opinião sobre os vinhos do Novo Mundo? Como o senhor os compara aos vinhos europeus?

Costumo dizer sempre que a oposição entre os vinhos do Novo e do Velho Mundo só faz sentido para os vinhos ruins. Cada continente tem defeitos próprios, particulares, aos seus vinhos ruins. Na Europa, os vinhos ruins não têm fruta, são malfeitos. No Novo Mundo, eles têm muita madeira ou não são feitos com uvas maduras. Às vezes, mesmo degustadores experientes têm dificuldades de distinguir um vinho do Novo Mundo de um do Velho Mundo. Acho que em cada um desses lugares se tenta fazer bons vinhos. Para mim, um grande vinho faz parte da mesma família. Não se esqueça de que as uvas usadas no Velho e no Novo Mundo são as mesmas. O sol é mesmo no universo, bem como a chuva, a terra, o solo vulcânico, o granito, o calcário. É, portanto, normal que haja semelhanças entre os grandes vinhos do Novo e do Velho Mundo. É normal.

Qual é a diferença entre um vinho de terroir e um vinho globalizado? Creio que muitas coisas superficiais sejam ditas sobre esse assunto. Coisas que fazem parte da tradição e das conversas quotidianas sobre o vinho. O terroir, como algo absoluto, não existe. Se plantarmos outras coisas que não uvas nos grandes terroirs franceses, como abacaxi ou alface em Montrachet, costumo dizer que a salada de Montrachet não será melhor do que a plantada no seu jardim. Um terroir, portanto, só pode ser compreendido por meio do trabalho do homem nesse local e pela adaptação da melhor cepa, da melhor viticultura e da melhor vinificação a esse terroir. Um terroir só vai vai exprimir com muita força e precisão as suas qualidades se o homem estiver à altura desse terroir. É assim no mundo todo. Podemos provar vinhos do Chile e da Argentina que têm um caráter muito individual, muito forte de terroir. Alguns grandes vinhos italianos, espanhóis, franceses e alemães também são assim. Não há diferença.

Mas como se distingue, numa degustação, um vinho de terroir de um globalizado?

Um vinho de terroir tem um personalidade ligada à sua história, o sol, a terra. Pode ter gosto de vulcão, de terras com granito ou calcário. Quem tem o hábito de degustar não reconhece as denominações geográficas. Isso é idiotice. Reconhecemos, com freqüência, o tipo de solo do qual sai o vinho, especialmente se provamos vinhos da mesma cepa cultivados em solos diferentes. Nesses casos, reconhecemos esse tipo de solo, seja o vinho proveniente da América do Sul, Austrália ou França. Já os vinhos globalizados são aqueles que tentam agradar a um determinado público. Mas, em algum momento, mais cedo ou mais tarde, se existe um terroir verdadeiro na origem do vinho, a maquiagem feita pelo homem desaparece depois de alguns anos de vida. Colhida em qualquer parte do mundo, uma uva, por exemplo, porta informações de seu solo. É impossível, durante a vinificação, impedir que essas informações façam parte do vinho. Essas informações estão na casca do uva, em seus taninos, em sua acidez, no perfume do vinho. É claro que o homem pode utilizar o controle de fermentação, usar madeira, técnicas para concentrar o mosto. O perigo está em usar extratos aromáticos. Nesse caso, é algo perigoso e o terroir desaparece. Mas, se o homem usa técnicas tradicionais, conhecidas há tempos, em algum momento a informação do terroir vai aparecer. Não me preocupo com a globalização. Diria que há uma globalização da qualidade, não uma globalização do terroir. Os vinhos se aproximam, se parecem, porque são melhores, mais harmoniosos, não porque deixaram de exprimir um terroir.

A França autorizou recentemente o uso de chips de madeira em seus vinhos. Qual é a sua opinião a respeito desse tema?

Não tenho nada contra, até porque o uso da madeira, mesmo das barricas, nos vinhos não tem nada de natural. É uma prática cultural. O maior erro que podemos cometer é considerar o vinho como um produto natural. O vinho é um produto da fermentação da uva, fermentação controlada e dirigida pelo homem. Não é um produto natural. O suco de frutas é um produto natural. Durante a fermentação, se não fazemos nada, o produto natural que sai dali é o vinagre. O vinho é sempre uma intervenção humana. Mas é muito difícil delimitar onde começa e onde termina uma intervenção humana moralmente justa nesse processo. Aqueles que condenam o uso de pedaços de madeira deveriam também condenar o uso das barricas de carvalho. É a mesma coisa, ainda que de outra forma. Então, por que não se deveria usar em vinhos mais correntes os chips se eles custam menor e dão um gosto que agrada ao público? Pessoalmente, não gosto do vinhos feitos assim. Mas não posso condenar as pessoas que usam os pedaços de madeira.

O senhor é a favor de colocar o nome das uvas no rótulos dos vinhos franceses oriundos de denominação de origem?

Acho que indicar o nome da cepa na etiqueta do vinho é uma informação útil ao consumidor, que tem direito de saber com qual uva foi feito um vinho. Por hábito cultural, com exceção da Alsácia e às vezes no Vale do Loire, os franceses nunca fizeram isso. Mas, nas regiões produtoras de vinho, se fala muito das cepas. Quando vou, por exemplo, a Condrieu (denominação do norte do Vale do Rhône), me dizem: “Agora, você vai provar um bom Viognier”. Lembro um produtor de Anjou (no Loire) que sempre me pedia para provar seu Chenin Blanc. Então, os produtores mencionavam cotidianamente os nomes das uvas, mas não os colocavam nas etiquetas. Hoje é uma informação colocar o nome da uva no rótulo.

O senhor acha que o sistema francês de denominação de origem precisa realmente ser reformado?

É preciso sempre adaptá-lo. Não podemos parar a história em 1936 (quando o sistema AOC foi criado). O público muda, há uma nova geração de consumidores, novos tipos de consumo e, além disso, há exigências técnicas a respeito do produtos agro-alimentares. Uma lata de sardinha tem uma enorme gama de informações sobre o produto. Uma conserva traz dados sobre seus colorantes, conservantes. Por que o vinho não deveria se enquadrar nessas exigências? É preciso colocar na etiqueta o nível de álcool, o nome da uva, eventualmente o nível de acidez, o açúcar residual. Não é preciso grafar tudo no rótulo, que precisa ser claro, simples e legível. Há o contra-rótulo, onde essas informações podem ficar.

Quantos vinhos o senhor degusta por ano?

Muitos (risos). Fazemos muitas maratonas de degustação. Com certeza, degusto mais do que 12 mil ou 15 mil de vinhos por ano. Para o guia Bettane Desseauve, desgustávos ao menos 6 ou 7 mil vinhos. Fora isso, há as visitas aos vinhedos em várias partes do mundo. É nosso trabalho. Mas, às vezes, é muito cansativo.

Quais são seus vinhos preferidos?

Tive a oportunidade de degustar os grandes vinhos que são feitos hoje em várias partes do mundo. À medida que provo mais grandes vinhos de estilo diferentes, menos fico inclinado a dizer que há um só tipo de vinho que me agrada. Acho que há uma grande família de grandes vinhos no mundo. Há alguns tipos que você ama um pouco mais que os outros por questão de gosto natural. É verdade que gosto muito dos vinhos feitos com a Pinot Noir, dos Borgonhas, às vezes de alguns grandes vinhos feitos com essa uva na Alsácia, Alemanha, Suíça, Nova Zelândia. Entre as uvas brancas, gosto muito da Riesling. Gosto dos bons vinhos da Alemanha, Alsácia, Áustria, da Austrália, da Nova Zelândia. Esse é o gosto pessoal que desenvolvi, mas gosto de todos os grandes vinhos que são feitos com harmonia e equilíbrio e que exprimem seu local origem e sua safra.

Por que o senhor deixou La Revue du vin Français?

Eu e meu amigo Desseauve deixamos a revista porque queríamos desenvolver mais atividades internacionais. Achávamos que era preciso falar mais do vinho francês em várias partes do mundo e, por outro lado, falar mais também do vinho estrangeiro na França. E fazemos isso agora de forma progressiva por meio de nosso site. A civilização do vinho cresce no mundo. Nós, franceses, temos uma escola de degustação, uma enologia desenvolvida. Com o tempo, outros países, como a Argentina, o Chile, o Brasil, também vão ter a sua.

Qual é sua opinião sobre Robert Parker e os críticos ingleses?

Os ingleses e os norte-americanos têm rivalidades históricas, culturais. Não vou me meter nisso (risos). Parker é um grande degustador, além disso é um amigo meu há muito tempo. Há 25 anos, admiro seu trabalho, sua capacidade de degustação, sua resistência física. Ele fala sempre dos vinhos com paixão, honestidade e vontade de descobrir novos talentos. Os que falam mal dele são invejosos. Podemos deixá-los com sua pequena inveja, mesquinharia habitual. Na Inglaterra, há grandes degustadores e conhecedores, nem todos jornalistas. Na Europa toda, há gente assim.

*Esta matéria é uma versão aumentada de um texto originalmente publicado no edição de maio de 2006 do jornal Bon Vivant

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