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O segredo da adega na tumba Tutancâmon

Ânforas com vinho tinto, branco e um fortificado auxiliariam o faraó-menino em sua jornada rumo aos deuses na vida após a morte

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br

13/02/2012
© The Griffith Institute/Oxford
Ânfora de Tutancâmon

Uma das ânforas de vinho encontrada na tumba de Tutancâmon

A tumba do faraó-menino Tutancâmon, que morreu com 18 ou 19 anos, foi descoberta em 1922 praticamente intacta pela equipe do arqueólogo inglês Howard Carter no Vale dos Reis, uma região da margem ocidental do Nilo próxima da velha cidade de Tebas (atual Luxor), cerca de 650 quilômetros ao sul do Cairo, onde os antigos egípcios enterraram de forma monumental dezenas de seus soberanos e nobres entre os séculos XVI e XI a.C. Por seu breve reinado, de menos de uma década, provavelmente entre 1332 e 1322 a.C., pelos tesouros e riqueza de detalhes milagrosamente conservados por mais de 3 mil anos em seu túmulo, e pela crença popular surgida no século passado de que cairia uma “maldição do faraó” sobre quem perturbasse o sono eterno da múmia, a figura de Tutancâmon tornou-se parte do imaginário ocidental quando o assunto é o antigo Egito. Não faltam, portanto, mistérios associados à vida, e à morte prematura, do jovem rei.

A farmacêutica e egiptóloga espanhola Maria Rosa Guasch Jané, da Universidade Nova de Lisboa, forneceu recentemente uma explicação para um desses enigmas. Segundo estudo por ela publicado em setembro na revista científica Antiquity, haveria um simbolismo religioso associado à presença de três ânforas, cada uma com um tipo diferente de vinho (tinto, branco e um fortificado de alta qualidade denominado shedeh), que foram posicionadas, respectivamente, a oeste, a leste e ao sul do sarcófago do soberano, dentro de sua câmara funerária. Cada tipo de vinho, bebida denominada de irep no Egito antigo e consumida apenas pela família real e as altas classes, auxiliaria o finado faraó a percorrer uma parte de sua viagem espiritual e a se transmutar em outros deuses em sua vida após a morte. “O vinho tinto era para a transfiguração de Tutancâmon em Osíris-Rá durante a noite e o branco para sua transfiguração em Rá-Horakhty pela manhã”, diz Maria Rosa. “Para o passo mais difícil da transformação de Tutancâmon, sua viagem noturna pela parte sul do céu, foi escolhido o shedeh, um vinho forte e muito apreciado”.

Desde o início da década passada, a cientista vem estudando o conteúdo das três ânforas resgatadas dentro da tumba do faraó-menino (numa câmara anexa ao túmulo de Tutancâmon, havia ainda 23 ânforas destinadas a armazenar óleos, gorduras, unguentos, frutas, outras comidas e até vinho). “Interessei-me em estudar as três ânforas porque elas foram encontradas numa tumba intacta e tinham inscrições hieráticas (uma forma simplificada da escrita hieroglífica) que indicavam a safra do vinho, sua proveniência, seu vinhedo, a qualidade e o produtor da bebida”, afirma Maria Rosa, que fez mestrado em análise química de vinhos na Faculdade de Farmácia da Universidade de Barcelona. “Desde criança, tenho interesse em egiptologia e vi que havia ali uma oportunidade de juntar esses dois assuntos. Como encontramos amostras intactas de resíduos nas ânforas, isso permitiu desenvolver métodos analíticos para estudar o seu conteúdo.”

Numa série de trabalhos feitos ao longo da década passada, Maria Rosa e outros colegas espanhóis foram descobrindo o tipo de bebida que havia dentro das três ânforas. Embora não exibissem mais seu lacre original e tampouco sua tampa de argila quando foram descobertas, as jarras de vinho, de formato cônico e com duas alças, não devem ter sido mexidas por ninguém depois que ali foram deixadas pelos súditos de Tutancâmon. O cenário encontrado sugere que as ânforas, com vinho dentro, foram destampadas pouco antes de a tumba real ser selada, mais ou menos no mesmo momento em que lampiões a óleo foram acesos para iluminar a câmara funerária. Com auxílio de modernas técnicas de análise, como a cromatografia líquida associada à espectrometria de massa, a natureza dos sedimentos presentes nas jarras foi desvendada.

Na ânfora situada a leste da múmia real, cuja inscrição dizia “Ano 5, vinho da propriedade de Tutancâmon, Senhor de Tebas, no rio ocidental, vinhateiro chefe Khaa”, havia um resíduo de cor marrom clara. Em sua composição, foi descoberto ácido tartárico, um indicador de uvas e, portanto, de vinho. No caso, vinho branco. Na jarra a oeste, que trazia os dizeres “Ano 9, vinho da propriedade de Aton no rio ocidental, vinhateiro chefe Sennufe”, foi achado um sedimento mais escuro e traços de ácido siríngico derivado da malvidina, um composto químico que dá a cor tinta, avermelhada, ao vinho. Por fim, na ânfora localizada ao sul da tumba do faraó, que descrevia seu conteúdo como sendo do “Ano 5, shedeh muito bom da propriedade de Aton no rio ocidental, vinhateiro chefe Rer”, existia resquícios de um vinho tinto fortificado, um preparado especial, mais valioso do que o vinho comum, que talvez tenha sido feito por meio de filtragem e aquecimento do seu líquido original.

Uma vez estabelecido o conteúdo das três jarras, que se encontravam entre a parede mais externa do santuário de Tutancâmon e as divisões internas que protegem o sarcófago do rei morto, Maria Rosa começou a se perguntar se poderia haver algum simbolismo naquilo tudo. Três ânforas, com distintos tipos de vinho, dispostas em três pontos cardinais ao redor da múmia do faraó-menino poderiam significar algo para os antigos egípcios? Para formular uma hipótese sobre esse cenário, a pesquisadora recorreu à mitologia desse povo que habitou as margens do Nilo há milênios. Tendo sido o primeiro deus a experimentar a renascimento, Osíris era o senhor da vida após a morte e também da fertilidade do Nilo. Segundo alguns textos encontrados em pirâmides, era ainda deus do vinho, sendo a parreira um símbolo da ressurreição. Nesse contexto, Tutancâmon, que já tinha status divino em vida, deveria, depois de morrer, empreender uma jornada espiritual pelos céus até se transformar em Osíris. Os diferentes tipos de vinho o auxiliariam a cumprir esse destino.

O vinho branco representava o nascer do Sol, a aurora amarelada, que ocorre a leste, o que explicaria o fato de a ânfora com essa forma de vinho na tumba de Tutancâmon estar situada nesse ponto cardinal. Rá era o deus do Sol e objeto de culto entre os egípcios na época do faraó-menino. Por oposição, o vinho tinto simbolizava o poente do Sol, a oeste, o momento em que Rá ganharia feições avermelhadas e a noite se aproximava. Já o prestigiado sheded, encontrado na jarra ao sul da tumba do rei, era o tônico fortificante que o soberano precisaria justamente no momento mais crítico de sua jornada rumo ao renascimento no além: seis horas após a morte do soberano, a alma de Rá se fundiria ao corpo de Osíris. De acordo com a mitologia, o finado faraó se transformaria em Osíris durante sua viagem pela porção meridional do céu.

Se a interpretação de Maria Rosa estiver correta, talvez se possa concluir que não havia nada de muito importante para os antigos egípcios situado no céu mais ao norte, visto que esse ponto cardinal era o único em que não havia uma ânfora com algum tipo de vinho na tumba de Tutancâmon.

 Esta reportagem foi publicada na edição 144 da revista Bon Vivant.

 

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