O homem que descozinhou o ovo
Pesquisador francês que inventou a gastronomia molecular quer mudar a forma como o homem cozinha
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
04/01/2008
Hervé This é francês, mora nos arredores de Paris e sabe de coisas que muitos chefes de cozinha estrelados nem desconfiam. Pratos à base de ovos são uma de suas especialidades. Aliás, sua vocação para trabalhar com alimentos foi despertada há 27 anos quando resolveu não seguir à risca uma receita de suflê de roquefort tirada de uma revista feminina e adicionou todos os ovos de uma vez em sua preparação. Não deu certo. Na semana seguinte repetiu o prato, só que acrescentou os ovos um a um. Ficou melhor, mas não perfeito. Na terceira tentativa, finalmente cedeu às dicas do periódico. Colocou os ovos de dois em dois e – voilá! – não é que o suflê saiu realmente bom? This então se perguntou por que a maneira de juntar os ovos à receita fazia tanta diferença no resultado final. Desde então, ele estuda esse e outros pequenos mistérios envolvidos nas receitas culinárias, algumas tendo como ingrediente principal ou secundário a melhor iguaria que a galinha fornece à humanidade, excluindo-se, claro, ela mesma. Entre suas descobertas destacam-se, por exemplo, uma forma de se “descozinhar” um ovo (uma pitada do agente redutor boroidreto de sódio, NaBH4, e três horas de espera dão conta da excêntrica tarefa) e a determinação da temperatura ideal para se aquecer um ovo a fim de que a clara fique com a máxima maciez possível sem endurecer a gema (uma série de testes lhe mostraram que 65°C é a melhor alternativa).
O primeiro erro de quem vê o trabalho de This é confundi-lo com um cozinheiro moderno, daqueles que fazem sorvete quente de parmesão ou usam nitrogênio líquido em pratos minúsculos de aparência futurista. Embora admire esses inventivos profissionais do fogão e os influencie com seus estudos, ele não é chef de cuisine. Físico-químico de formação, This não dá expediente em nenhum restaurante parisiense. Bate cartão nos laboratórios do Institute Nationale de la Recherche Agronomique (Inra) e do prestigioso Collège de France, onde, a convite do prêmio Nobel de Química Jean-Marie Lehn, ministra cursos e faz experimentos desde 1995 na área em que é referência internacional, a gastronomia molecular. Ao lado do físico húngaro Nicholas Kurti, que fez carreira na Universidade de Oxford e morreu em 1998, This é visto com o fundador da gastronomia molecular, expressão cunhada por ambos no final da década de 1980.
O segundo erro é não compreender o significado dessa disciplina dentro de sua área-mãe, a ciência dos alimentos. “A gastronomia molecular estuda preferencialmente as transformações culinárias feitas em casa e nos restaurantes e os fenômenos ligados ao ato de comer”, explica o físico-químico, que esteve no Brasil no final de outubro para dar palestras e lançar três números especiais da edição brasileira da revista Scientific American dedicados à sua especialidade. “Não estou interessado em entender a cozinha industrial.”
Nem todo mundo concorda com a expressão gastronomia molecular para descrever o tipo de pesquisa feita por This. Alguns cientistas argumentam que, diferentemente dos biólogos moleculares, o físico-químico francês não estuda a interação entre moléculas individuais durante a preparação de pratos culinários. Apenas se ocuparia de um ramo da química dos alimentos.
Estrelas e suflê – Polêmica à parte, This e seus seguidores explicam que seu trabalho não consiste em investigar de forma isolada os componentes de uma fruta, vegetal ou carne, como fazem os cientistas dos alimentos. Dedicam-se a escrutinar, com a metodologia científica, os fenômenos que ocorrem durante a execução de uma receita e tentam entender o papel de cada ingrediente – e dos constituintes desse ingrediente – e decifrar a relevância (ou não) dos procedimentos envolvidos na preparação de um prato. Em poucas palavras, são pesquisadores do fazer culinário, da comida elaborada artesanalmente pelas pessoas, permeada de preceitos (pretensamente) técnicos, da cultura local e, em alguns casos, crendices.
Nessa busca por explicações do que ocorre com os alimentos no interior das panelas ou nos fornos, fazem a eles mesmos questões que podem parecer tolas para outros cientistas, mas que são dúvidas eternas de quem lida com as caçarolas, de forma amadora ou profissional. É verdade que, como muita gente acredita na França, a maionese feita por mulheres menstruadas desanda? Cortar a cabeça de um porco assado logo após retirá-lo do forno realmente ajuda a manter a pele do suíno crocante?
Respostas para esse tipo de indagação – respectivamente, não e sim para as duas perguntas acima formuladas – é que movem o trabalho dessa nova frente de pesquisa. “É uma triste reflexão sabermos mais sobre a temperatura dentro das estrelas do que dentro de um suflê”, disse Kurti, numa célebre palestra filmada pela BBC em 1969, ainda na, digamos, pré-história da gastronomia molecular. Na ocasião, além de literalmente verificar que a temperatura dentro de um suflê oscilava entre 20 e 70°C, o físico húngaro causou sensação ao fazer um tipo de sobremesa num novo aparelho, um forno de microondas.
Para os cientistas da cozinha, a arte de transformar produtos de origem vegetal ou animal em alimentos comestíveis parou no tempo e se encontra presa a receitas que, não raro, usam ingredientes desnecessários ou promovem procedimentos inúteis ou de função ignorada. “É uma loucura, mas ainda cozinhamos como na Idade Média”, afirma This, que em sua passagem por São Paulo encontrou tempo para visitar o Mercado Municipal e se deliciar com cores e sabores de várias partes do Brasil. “Somos muito apegados à tradição e seguimos livros antigos com receitas que deveriam estar em museus.”
Ingrid Schmidt-Hebbel, coordenadora do curso de Tecnologia em Gastronomia do Centro Universitário Senac, também mete a colher nesse tema. “Nada de realmente novo aconteceu na gastronomia no século XX”, diz Ingrid, especializada em bioquímica de alimentos. “A incorporação de novos equipamentos movidos à eletricidade apenas tornou mais fácil a execução de tarefas manuais, mas os procedimentos não mudaram em sua essência.”
Ao aumentar o conhecimento sobre os procedimentos culinários, o físico-químico francês acha que pode contribuir para que a humanidade coma melhor no século XXI. Ele não chega a acreditar que as refeições diárias do homem do futuro serão parecidas com a comida desidratada dos astronautas, mas gosta de estimular os chefs modernos a empregar moléculas específicas, em vez de ingredientes tradicionais, para alcançar melhores resultados em seus pratos. Em vez de, por exemplo, espremer o clássico suco de limão sobre os vegetais para evitar seu escurecimento, por que não usar simplesmente o ácido ascórbico, a popular vitamina C? Afinal, o ácido é a substância do sumo cítrico responsável por tal efeito protetor. Muitos cozinheiros clássicos ainda torcem a caçarola para as idéias da gastronomia molecular. Mas alguns chefs de renome, como o catalão Ferran Adrià, do famoso restaurante El Bulli, se tornaram expoentes desse novo fazer culinário, que se utiliza, ainda que parcialmente e a seu modo, das experiências e descobertas de This e de outros cientistas.
Sob a ótica da ciência, cada parte de um prato culinário pode ser descrita esquematicamente como um sistema disperso ou coloidal, uma mistura homogênea na qual uma substância se divide em partículas diminutas e se espalha em meio a uma segunda substância. Não é um jeito muito apetitoso de lançar o olhar sobre um pudim ou uma lasanha, mas ajuda a entender a arquitetura interna de uma receita. Por esse prisma, três fases da matéria podem estar envolvidas num prato (os sólidos, os líquidos e os gasosos). Esses estados podem estar dispersos, misturados, introduzidos um no outro ou superpostos. Raramente uma preparação culinária é totalmente sólida, o que seria difícil de engolir, ou líquida (nesse caso, seria uma bebida, não uma comida). This desenvolveu até uma forma de notação com letras e umas poucas palavras para representar os tipos de ingredientes e procedimentos que entram na execução de um prato.
Receitas robustas – Talvez sua contribuição mais interessante na análise de preparações culinárias seja a formulação de uma equação que tenta quantificar a robustez de uma receita. Uma receita robusta é aquela que tem poucas chances de dar errado. A fórmula leva em conta vários parâmetros, como a massa dos ingredientes, o tempo e a temperatura empregados em cada etapa da receita e demais instruções para execuções do prato. Depois de fazer cálculos e coletar informações sobre mais de 25 mil receitas em livros culinários, This concluiu que a robustez de uma receita é inversamente proporcional à quantidade de instruções de preparo existentes em seu enunciado. Ou seja, receitas mais simples tendem a dar mais certo. A regra geral parece fazer sentido para a preparação de cenouras grelhadas, suflês, ovos cozidos, maionese e carne assada. “Uma exceção são as sopas e os molhos, que dificilmente dão errado, mas apresentam muitas variações em suas receitas devido à sua grande importância culinária”, comenta This.
Por ser um dos alimentos mais básicos da cozinha, presente como protagonista ou coadjuvante em um sem-número de receitas doces ou salgadas, o ovo é uma vedete dos estudos de This. Por que o ovo perfeito deve ser cozinhado ou frito em torno dos 65°C, com a aplicação de menos calor do que comumente se faz nas cozinhas? A essa temperatura, a clara coagula de forma delicada, pois apenas uma de suas proteínas, a ovotransferina, se denatura. Os efeitos sobre a gema são ainda menores. Ela permanece praticamente crua e, de novo, somente uma de suas proteínas, a gama-livetina, se enrijece. Para chegar a essa conclusão, o pesquisador cansou de preparar ovos em seu laboratório, variando levemente a temperatura a cada tentativa e vendo os efeitos sobre os constituintes do alimento. Dessa forma, determinou a temperatura de coagulação de cada uma das proteínas da gema e da clara. “O que realmente importa é a temperatura em que se faz o ovo, e não o tempo de cozimento”, assegura This.
Numa outra linha de estudo, ainda no terreno das gemas e claras, o francês mostrou também que os ovos nem sempre são indispensáveis em algumas receitas. Bolou um chantilly de chocolate que não necessita do ingrediente para a criação dessa emulsão cremosa. O renomado chef Pierre Gagnaire, que todo mês cria uma receita em seu restaurante parisiense a partir dos estudos de This, chegou até a incorporar a novidade em seu cardápio alguns anos atrás. Trocando o chocolate por outro produto, pode-se fazer chantilly de queijo, manteiga ou até foie gras. É estranho, mas talvez a comida nos próximos anos junte cada vez mais formas e gostos aos quais o homem não estava acostumado.
*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de dezembro da revista Pesquisa Fapesp
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