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De Clos des Nobles a Les Riceys

Ou como um jornalista passa a se interessar por vinhos

Marcos Pivetta/www.jornaldo.vinho.com.br

28/03/2006
Entrada do Château de Pierry, em Champagne: aula de champanhe e história francesa (Foto: Marcos Pivetta)
Entrada do Château de Pierry, em Champagne: aula de champanhe e história francesa (Foto: Marcos Pivetta)

Nunca gostei muito de cerveja, bebida amarga demais para mim. Preferia um refrigerante, uma Coca, um guaraná, uma soda. Mas, quando se chega aos 18 ou 20 anos, a gente começa a procurar uma bebida de gente grande. Umas das primeiras lembranças que tenho do vinho é a chegada em casa do meu pai, lá pelo final dos anos 1980, vindo de Veranópolis, na Serra Gaúcha, com algumas garrafas, poucas, de vinho. Coisa simples, bem simples. Na casa dos meus pais, em Santo André (SP), não bebíamos (e continuamos não bebendo) muito álcool. Logo de cara gostei do vinho. Sem dúvida, era melhor que cerveja, mais doce, mas não tão doce quanto os refrigerantes – e, de quebra, ainda dava uma tonturinha depois de uns dois copos. Dos rótulos que desembarcavam com meu pai só me lembro de um com certeza: o Clos des Nobles, acho que branco, da vinícola Aurora. É talvez a mais antiga imagem de vinho que guardo na memória – sem contar aquele costumeiro espocar de sidra barata, que mais tarde aprendi não se tratar de vinho, nas festas de final de ano.

Tempos depois, já um ocasional bebedor de vinhos, me recordo que um dos programas prediletos com minha namorada (e atual mulher) era ir num restaurante e tomar um vinho com a comida. De novo, uma das imagens que me vêem à cabeça é ter escolhido, um dia qualquer, um determinado restaurante só porque eles ofereciam uma garrafa de vinho, como cortesia, para quem pedisse um dado prato. É lógico que pedimos o tal prato (não lembro o que era) e tomamos o tal vinho de brinde. Que vinho? Acho que era um modesto Saint Germain, talvez rosé, talvez branco, também da Aurora. Essa cena aconteceu antes da abertura do país aos vinhos importados, ou, quem sabe, nos primeiros tempos da abertura. Não havia ainda Miolo Seleção e assemelhados – ou pelo menos eu ainda não havia me dado conta deles.

Em algum momento dos anos 1990, descobri que já ganhava o suficiente para comprar vinhos importados, italianos e franceses. Ah, que maravilha! Vinhos importados, bons e razoavelmente baratos. A essa altura, eu já havia aprendido que existiam vinhos – os europeus, é claro – com um selo de qualidade no rótulo: três ou quatro letrinhas, DOC, DOCG ou AOC. Esses caras do Velho Mundo são mesmo inteligentes. Vinho com selo de qualidade, pensei comigo mesmo. Foi quando comecei a tomar os Valpolicellas, se possível o Bolla. Valpolicella com pizza. Nada mais paulista. Um dia comprei o vinho errado no supermercado. Em vez do Valpolicella, botei o Merlot Bolla no carrinho da despesa. Os rótulos eram quase iguais e acho que nem me dei conta de que havia o nome da uva na garrafa. Tomamos o vinho, que, por sinal, achei melhor que o Valpolicella. A decepção veio quando descobri, depois de tomar muito vinho sem graça, que as denominações de origem não são garantia de qualidade coisa nenhuma. São apenas um indicador de onde vem o vinho e, em muitos casos, das uvas e processos usados na produção da bebida. DOCs e AOCs sinalizam, no melhor dos casos, um estilo de vinho.

No ano 2000, houve o boom da internet. Mudei de emprego, larguei o mundo impresso e fui parar num site de turismo. Ao contrário do que pensava, não viajei quase nada no emprego. Mas uma viagem das boas pude fazer: um tour pelo Vale do Loire e pela região de Champagne, além de uma parada em Paris. Eu já conhecia a França, mas não as regiões vitícolas. Depois de um périplo acelerado pelos castelos que faziam a alegria da nobreza local (cheguei a visitar quatro ou cinco num único dia), parei ao acaso num produtor-negociante de Montrichart, Paul Buisse. Foi a primeira vez que pude experimentar, lado a lado, quatro ou cinco vinhos de um mesmo produtor. Alguém da família Buisse falava um pouco sobre um vinho e me servia uma tacinha. Depois falava de outro e mais uma tacinha. Comecei a perceber então que o vinho podia ser como tantas outras coisas boas da vida: cheio de fascinantes variações em torno de um mesmo tema. Fiz uma parada ainda em um grande produtor de espumantes de Montrichard, a Monmousseau, mas, a exemplo do que sentiria pouco depois nas grandes casas de champanhe, a acolhida foi meio burocrática. Não pude nem ver direito os 15 quilômetros de caves calcárias da empresa.

Depois de breve passagem por Paris, fui para a Champagne. Ciceroneado pelo pessoal do escritório de turismo da região, conheci algumas das grandes casas de champanhe de Reims e Épernay. Nada de muito emocionante. Gente uniformizada, globalizada e de fala estudada guiava os turistas e visitantes pelo mundo das borbulhas. Fui também à Abadia de Hautvillers, aquela da qual Dom Pérignon era tesoureiro quando, há pouco mais de 300 anos, “inventou” o primeiro espumante do mundo. Uma igrejinha, sem dúvida, interessante para quem gosta de história. Da ida à Champagne, três lugares ficaram arquivados na minha memória: a visita, num dia de muita chuva em Reims, às maravilhosas caves subterrâneas da Ruinart, a mais antiga firma produtora de champanhe, fundada em 1729; a parada no Château de Pierry, uma bela construção do século 18, a dois quilômetros de Épernay, onde encontrei o simpático Jean-Paul Gobillard, do Champagne Paul Gobillard; e a esticada ao departamento do Aube, região tida como menos nobre para a fabricação de champanhe, para conhecer um pequeno produtor da localidade de Les Riceys.

Por que essas três escalas me marcaram tanto? Bem, na Ruinart, aprendi que os aromas de vinho e de chuva (se é que isso é possível) se harmonizam bem e que as escorregadias escadas com poças d’água que davam acesso às caves tornavam a vista ainda mais deslumbrante. No Château de Pierry, o eloqüente Gobillard me deu uma pequena aula de champanhe e história francesa, com bom humor e sem esnobismo. Em Les Riceys, vivi uma cena que sempre me faz lembrar de uma coisa básica: por mais sofisticação e pompa que queiramos imprimir ao mundo do vinho (e, por extensão, a nós mesmos), não podemos esquecer que o vinho é um produto da terra e da mão do homem. E o homem que o faz, o produtor, é, na maioria das vezes, um sujeito simples, do campo. Seja ele francês, italiano, argentino ou brasileiro. Pois bem, em Les Riceys, pegamos (eu e o funcionário do escritório de turismo) o produtor de champanhe, um gordinho tímido, meio de surpresa. Depois de um dia de labuta, o produtor, cujo francês eu tinha dificuldades em compreender, estava todo suado, despenteado e seu nariz (sinto dizer) precisava de um lenço. Uma visão que em nada lembrava o glamour das grandes maisons de champagne. Enfim, diriam os estrategistas de marketing, o sujeito era uma péssima propaganda do seu próprio produto. Ainda assim, o produtor do Aube foi talvez o personagem mais real da viagem. Eles nos deu duas taças de seus vinhos espumantes, uma de seu champanhe sem safra e outra de uma cuvée especial, provavelmente safrada. Não dissemos nada a ele, mas eu e o funcionário do escritório de turismo preferimos o champanhe mais barato. Antes de deixar Les Riceys, o produtor me deu de presente uma garrafinha do tal champanhe, que eu trouxe com alegria em minha bagagem para o Brasil.

Assim me iniciei no mundo do vinho. Do Clos des Nobles a Les Riceys. Cursos, livros, degustações, reportagens e entrevistas (e o risco permanente de se tornar um enochato) – tudo isso veio depois.

Boa leitura a todos que navegarem por este site!

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