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Aromas e sabores de um chef do interior

Ex-médico que virou cozinheiro, João Roberto, do restaurante La Pyramide, de Ribeirão Preto, fala de vinho e comida

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

17/04/2008

João Roberto: “Considero pessoalmente o vinho um alimento, não um complemento alimentar” (Foto: Alexandre Tavares)

Seu restaurante, de inspiração provençal, não está numa grande capital. Não aceita fumantes, cartão de crédito ou que se leve um vinho para tomar em suas dependências. Para isso, há uma carta com 80 rótulos escolhidos pelo próprio chef. Um estabelecimento diferente, que também não tem maître, gerente ou garçom. Conta com apenas 18 lugares e em sua fachada não há nem placa com o nome da casa. Esse é o estrelado La Pyramide, de Ribeirão Preto, no interior paulista, o restaurante de um ex-cirurgião, João Roberto Pereira Silva, que virou cozinheiro na década de 1980 e também especialista em vinhos. “Acharam que eu estava louco quando deixei a medicina”, diz João Roberto, como é conhecido, nesta entrevista concedida por telefone.

O ex-médico tornou-se também recentemente escritor do mundo do vinho. Desde o ano de 2006, assina uma coluna semanal sobre a bebida no jornal Gazeta de Ribeirão Preto e agora lança um livro, Uvas & Vinhos – O Prazer da Descoberta (Editora Novo Conceito, R$ 34,90, 302 páginas). A obra reúne colunas assinadas pelo autor entre março de 2006 e agosto de 2007, abordando os mais diversos tipos de vinho, as grandes regiões produtoras do fermentado e temas ligados à produção e apreciação da bebida. Nesta entrevista, João Roberto, que em 1997 foi escolhido o chef do ano pelo Guia Quatro Rodas, fala de sua guinada de vida e, claro, de vinho e comida.

Por que um cirurgião bem-sucedido troca a medicina pela vida de chefe de cozinha e passa a se interessar por vinho?

Saí da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP) aqui em Ribeirão Preto em 1967. Mudei-me para os Estados Unidos onde fiquei dez anos fazendo especialização e exercendo a prática da cirurgia cardíaca e toráxica. Morei a maior parte do tempo no estado da Pensilvânia e temporadas menores nos estados de Nova York e no Texas. Fui convidado insistentemente para ficar lá. Mas eu havia feito uma faculdade pública e achava que tinha a obrigação de voltar para cá. Voltei e montei o Hospital do Coração aqui em Ribeirão Preto, junto ao Hospital São Francisco. Fui professor de cirurgia toráxica na Faculdade de Medicina de Cantaduva, fui co-responsável pela fundação e manutenção da parte de choque da UTI do HC durante cinco anos. Depois de sete anos no Brasil, tinha uma clínica muito grande. Fazia muitas cirurgias. Mas achei que a medicina havia perdido aquilo que eu me propunha a fazer, que ela havia ficado muito impessoal.

Quando o senhor começou a trabalhar em tempo integral com gastronomia?

Sempre gostei de culinária. Desde mais ou menos 1982, ainda como médico, eu escrevia em revistas locais sobre vinhos, convidava o pessoal para jantar na minha casa. Mas eu não fiz aquilo que muita gente faz: primeiro, cozinha em casa e depois monta um restaurante. Não foi bem assim comigo. Fiquei uma pequena temporada em Natal, trabalhando num bar, no Morro do Careca. Ajudava um dos senhores a cozinhar. Eu cozinhava lagosta, camarão para os turistas (estrangeiros) porque falo várias línguas. E ele vendia cerveja. Aí eu voltei para Ribeirão Preto e montei um restaurante. Na época em que deixei a medicina, meus colegas achavam que eu tinha ficado louco. Os amigos vieram conversar comigo, perguntavam se eu precisava de auxílio. Eu dizia que estava bem. Eles diziam que em seis meses eu voltaria para a medicina. Mas eu nunca voltei. Eu tive uma fase de transição, mas, em seguida, me dediquei totalmente à culinária. Quem ficou uma aliada firme ao meu lado na minha decisão foi a minha esposa Regina, com que sou casado já há 43 anos. Ela é que trabalha comigo. Você viu que foi ela quem atendeu (ao telefone). Só nos dois trabalhamos no restaurante.

Seu interesse por vinho surgiu ao mesmo tempo que a paixão pela culinária?

Nos Estados Unidos, eu já cozinhava e fazia degustações. O interesse pelo vinho foi concomitante à comida. Morei perto de uma região, os Finger Lakes (no estado de Nova York), e lá tinha um senhor que produzia uvas, de quem eu comprava vinhos. Também viajei muito pela Europa, participei de confrarias. E aproveitei que eu tinha uma sensibilidade perceptiva para aromas e sabor que me ajuda bastante.

O vinho tem uma longa história dentro da medicina e há muitos médicos que se tornaram conhecedores da bebida. A sua formação em medicina impulsionou o seu interesse por vinho?

A formação, a disciplina, a maneira de conduzir e planejar, e a chance de ter um desenvolvimento cultural mais amplo, tudo isso ajuda na gastronomia e, consequentemente, no vinho. Considero pessoalmente o vinho um alimento, não um complemento alimentar. Um alimento que faz parte do prato.

Essa afirmação não é um exagero?

O vinho tem flavonóides, sais minerais. Não é uma simples bebida alcoólica. Ele é muito mais do que isso, como falo no meu livro. Sobre vinho e saúde, vou lhe dizer exatamente a minha opinião. O vinho contém álcool e sabemos que o álcool pode causar dependência. Então, se você nunca tomou álcool, não acho que é certo começar a beber por causa dos benefícios que o vinho traria. Eu disse traria. É importante o condicional. Além do mais, o alcoolismo tem um componente genético muito grande. Se há pessoas na família com esse problema, é bom tomar muito cuidado com o álcool. Sempre digo que a melhor pessoa para orientar sobre o consumo de vinho é o seu medico ou nutricionista. Para responder se o vinho faz bem para a saúde, é melhor consultá-los.

Você pessoalmente bebe com que freqüência?

Bebo muito pouco. Mais no domingo e na segunda-feira à noite, quando cozinho na minha casa. Durante a semana, praticamente não bebo. Não degusto com o cliente e nunca me sentei à mesa com ninguém no restaurante (para beber). Não faço isso. Meu esquema é um pouco diferente. Quem vem no meu restaurante, só é atendido com reserva. Mesmo que haja mesa vazia, só atendo com reserva – se bem que não fica mesa vazia. Se há uma reserva para as 22h, ninguém senta na mesa antes disso. Hoje, por exemplo, eu tenho mesas reservadas para as 20h, às 21h e às 22h. Isso facilita as coisas. As pessoas podem tomar o vinho com calma, apreciar, sentir.

Com que freqüência você degusta?

Degusto de duas as três vezes por semana os vinhos que vou colocar na minha carta, que tem cerca de 80 rótulos de todo o mundo. Tudo o que tomo, eu anoto. Tenho um enorme banco de dados. Boa parte dos vinhos da minha carta eu mudo toda semana. Toda terça-feira eu mudo alguns vinhos da minha carta. Escrevi há algumas semanas sobre vinhos da ilha de Sardenha, que são muito bons. Escrevi sobre (as uvas) Cannonau e a Monica. Esses vinhos entraram agora na minha carta e vão ficar por um tempo mais ou menos prolongado. Assim como já ficou por um tempo prolongado um vinho do Líbano. Agora estou esperando uns vinhos da Califórnia para provar. Gosto muito de seus excelentes Cabernet e dos Merlot, que perderam um pouco de prestígio por causa de um filme, mas agora estão voltando (à moda). A Pinot Noir não vai muito bem lá. Gosto muito do Chardonnay da Califórnia, que já teve muito carvalho, mas agora tiraram um pouco da madeira. Ele é ligeiramente amanteigado, tem uma cor bonita.

Tem algum alimento proibido com o vinho?

Não tem absolutamente nada. Mesmo o chocolate eu recomendo. Você compra um chocolate com pimenta da Lindt, importado, que fica uma delícia com um Syrah australiano de uma determinada região mais quente. Você experimenta o chocolate, deixa dissolver na boca e prova o vinho. Depois toma uma água e faz o inverso. Prova o vinho e depois o chocolate. Você vai ver que coisa fantástica. Há algumas semanas, escrevi em três colunas consecutivas sobre vinho e chocolate. No meu restaurante, não há cerveja. Só há água, refrigerante, sucos e vinhos. Todas as mesas tomam vinho. Tenho um vinho nosso, que eu eu chamo de vin de la maison, um Cabernet-Syrah agradabilíssimo. Sirvo em taça e numa jarrinha. É um vinho francês. Tenho um feedback muito grande. Tem gente que vai na loja e pede o vin de la maison do João. Não tenho intermediário para servir na mesa. Por isso, tenho um feedback muito grande das pessoas. Todos os vinhos que coloco no restaurante sei exatamente o que são. Eu posso provar um vinho hoje e só colocar na carta daqui a três meses. Eu aconselho muito bem o cliente. Às vezes, eu até corrijo o molho de um prato de acordo com o vinho do cliente. Ou a gente tenta aconselhar outro vinho. Falo isso no livro.

Aliás, reparei no livro que você não cita nome de nenhum produtor em suas colunas. Por que essa postura?

Nosso restaurante não tem nada escrito do lado de fora. Nunca fiz publicidade de espécie nenhuma. As entrevistas que eu dou, como esta, são de caráter informativo. Tento passar o que eu tenho. Não falo (nome de produtor). Eu não me prendo a nada. Não tenho vínculo com ninguém. O meu refrigerante, por exemplo, é igual ao de todos.

Mas muitas vezes o consumidor não quer dicas específicas, utilitárias?

Procuro passar conhecimento. Procuro dar uma orientação que permite às pessoas saber o que é um bom Riesling, um bom Chardonnay, um bom Cabernet, o que é um tipo de carvalho.

Mas os leitores não reclamam? O consumidor não fica perdido em meio a tanto rótulo que há hoje no mercado nacional?

Ao contrário. Por exemplo, escrevi recentemente sobre os Brunello di Montalcino. Veio um pessoal da Itália aqui no restaurante e uma das pessoas me disse que seu pai era dessa região e que ela tinha aprendido muito sobre o vinho (com o que eu escrevi). Isso é interessante. Acho que não faz falta ao leitor (indicações específicas de vinhos). Do jeito que eu falo acho que dá para saber o que procurar. Quem tem uma loja de vinhos tem obrigação de ter atendentes que saibam informar ao consumidor, que saibam dar ao cliente orientação.

Mas, às vezes, o consumidor não fica refém dos atendentes de lojas, que podem querer vender o Brunello mais caro em seu estoque, um vinho que talvez nem seja tão bom assim?

Mas isso acontece por que a pessoa que vende não teve uma formação adequada.

Ou por não ter sido tão honesta assim.

No meu restaurante, nunca sugiro o vinho mais caro. Faço até o contrário. Sugiro muitas vezes um vinho que custa um quarto de outro. Dou a carta de vinhos para as pessoas escolherem. Minha margem de lucro com vinho é pequenininha, mínima. Não cobro mais do que 30% de margem. E é escalonado. Quanto mais caro o custo do vinho, menor a margem. O vinho mais em conta tem uma margem maior. Nos vinhos mais caros, minha margem é mínima. Eu os tenho mais por ter. Mas, é claro, que eu tenho custos. Tenho taças de cristal adequadas para cada vinho, tenho 15 tipos de taças.

Como você harmoniza vinho e comida?

É um tema que está sempre presente no meu livro. Faço harmonização com o que chamo de ponte, levando em conta, por exemplo, o molho que você vai usar no prato, a quantidade de sal e de açúcar, a quantidade de ervas aromáticas. Me prendo a isso para harmonizar. Escrevi um artigo recentemente sobre o peixe e o vinho tinto. Recomendo, por exemplo, um Pinot Noir com uma fatia de foie grãs grelhado numa redução de vinho Pinot Noir, com um toque de baunilha em grão, em cima da qual coloco uma cavaquinha. Essa é a harmonização que eu faço, na qual não vejo nada de inconveniente. Faço também um salmão grelhado com Pinot Noir que fica muito bom.

Já ouvi de enólogos chilenos e argentinos a defesa da harmonização de alguns peixes com Carmenère e Malbec. Você já testou essas combinações?

Com Malbec, a única carne nobre que trabalho é o filet mignon de vitela. Mignon com foie gras e trufas e mignon com cogumelos. Se a carne é mais churrasqueada e queimada, o vinho rico em carvalho não dá muito certo. Ele vai ficar mais amargo do que devia. Quanto mais complexo o vinho, mais simples o prato, menos coisas eu coloco nele. O contrário nem sempre é verdade. Se você vai tomar um belo Bordeaux, acho que ele vai bem com uma carne grelhada, vermelhinha por dentro, com um toque de ervas de aromáticas ou uma redução de um vinho levinho. Quase uma carne in natura.

Você parece ter preferência por vinhos do Novo Mundo. Estou certo?

Não, não. Não tenho preferência nenhuma. Tenho vinhos de todos os países, da França, Itália, Portugal, Espanha, Áustria, Alemanha. Tenho até Pinot Noir da Áustria, que é excelente, um best-seller. Do Brasil, só tenho os espumantes. Já trabalhei com alguns vinhos (tranqüilos) do Brasil, mas não foi aquilo que as pessoas esperavam. Mas não tenho nada contra. Agora os espumantes brasileiros, rosé, brut e demi-sec, são muito bons. Ganham de muitos franceses, italianos e espanhóis. Vem gente aqui do mundo inteiro no meu restaurante e a aceitação do brut é muito boa. Sirvo-o em taça e em garrafa.

Você tem alguma uva preferida?

Gosto de um bom Cabernet Sauvignon, bem vinificado com o carvalho adequado. Apesar de criticados, os bons Cabernets da Califórnia são realmente muito bons. Gosto também de vinhos brancos, de um bom Sauvignon Blanc, como os da Nova Zelândia, que são bem perfumados, ou mesmo da região de Bordeaux. Também gosto muito do Merlot e das uvas do sul da Itália. Gosto muito do Zinfandel. Ele é mais picante que o Primitivo, que é mais adocicado. Gosto também do Aglianico, uma uva para quem gosta de mastigar, para gente grande.

Qual a sua avaliação dos Merlot nacionais?

Tem vinhos nacionais muito bons. Acho que o Brasil ainda pode crescer muito. O que falta ao vinho nacional é uma identidade. Quando você da Argentina, lembra da Malbec – ou vice-versa. Fala da Nova Zelândia, lembra da Sauvignon Blanc. Fala da Austrália, lembra do Shiraz . No Brasil, ainda falta essa uva (emblemática). Por que o vinho brasileiro não é mais divulgado lá fora? Li no serviço online da (revista norte-americana) Wine Spectator que o vinho brasileiro não está disponível no mercado de lá para fazerem uma melhor avaliação. As pessoas hoje querem coisas com identidade, coisas típicas. Falta apoio governamental no Brasil, algo que lá fora é muito forte. O enoturismo também é muito forte no mundo inteiro. Os impostos aqui são muito altos e o custo de produção é alto. Se não há financiamento ou alguém por trás, é muito difícil tocar uma vinícola aqui.

*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de março de 2008 do jornal Bon Vivant

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