A terra antes da uva
Produtores italianos da Romagna vão alterar suas DOCs para destacar o nome de seu território nos rótulos dos vinho
Marcos Pivetta, de Faenza*
04/07/2011
Pense em alguns produtos alimentícios tipicamente associados à Itália: o queijo parmesão (Parmigiano-Reggiano, em italiano), o presunto de Parma, o aceto balsâmico de Modena e o molho à bolonhesa. Tudo isso é originário da Emilia-Romagna, uma rica região administrativa do norte da Itália conhecida como a detentora da culinária mais generosa da Velha Bota, de uma fortíssima indústria automobilística (as motos Ducati e os carros superespostivos da Ferrari e da Lamborghini são feitos ali) e de uma tradição acadêmica invejável (a Universidade de Bolonha é mais antiga do mundo ocidental e está em atividade contínua desde o século XI). A rigor, a Emilia-Romagna é uma criação moderna e um pouco artificial de duas regiões historicamente distintas, a Emilia, em sua porção oeste, e a Romagna, em sua metade leste.
Pense agora nos mais renomados vinhos (tintos) da Itália: Barolo e Barbaresco, ambos elaborados no Piemonte com a caprichosa casta tinta Nebbiolo; Chianti Classico, Brunello di Montalcino, Vino Nobile di Montepulciano, todos feitos na Toscana tendo como base a Sangiovese, a uva mais italiana das uvas italianas. Qual é a maior contribuição da Emilia-Romagna ao mundo do vinho? Provavelmente o Lambrusco, um frisante tão barato, ubíquo e sem prestígio que, mesmo quando, por algum milagre, se encontra um rótulo de nível razoável, quase ninguém ousa elogiar.
Confrontados com essa incômoda realidade, os produtores de vinho da Romagna — que parecem ter maiores ambições de qualidade do que seus colegas da Emilia, terra do Lambrusco — decidiram então mudar, a partir da safra 2011, o nome de suas principais denominações de origem de controlada (DOCs). Em vez de destacar a cepa usada para elaborar a bebida, as DOCs vão colocar em primeiro plano o nome da subregião comum a todas, a Romagna. Seguindo essa lógica, o Sangiovese di Romagna, carro-chefe dos tintos locais por ser a maior e mais importante denominação de origem, passará a se chamar Romagna Sangiovese. A obscura DOC do tinto Cagnina di Romagna — a cepa Cagnina, também localmente conhecida como Terrano, é a variedade Refosco — será denominada Romagna Cagnina. Os brancos Albana di Romagna, Trebbiano di Romagna e Pagadebit di Romagna serão chamados de Romagna Albana, Romagna Trebbiano e Romagna Pagadebit.
“Ainda não temos 100% de certeza, mas mudanças deverão entrar em vigor antes de setembro deste ano” afirma Giordano Zinzani, presidente do Consorzio Vini di Romagna, entidade criada em 1962 em Faenza, capital da cerâmica na Itália. A entidade congrega 80 produtores de vinho, 9 cooperativas, 10 engarrafadores da bebida e 4.900 produtores de uva. No ano passado, os associados venderam quase 12 milhões de litros de vinho, dois terços deles para o mercado interno e um terço para o exterior. As alterações visam combater a “padronização do gosto” promovida, segundo Zinzani, pelos vinhos do Novo Mundo e colocar em destaque o nome da Romagna e de seus terroirs em vez das cepas.
No caso do Sangiovese di Romagna, que deve ser elaborado com ao menos 85% da uva Sangiovese, as modificações serão ainda mais amplas. Além da troca de nome da DOC, serão instituídas 12 subzonas dentro da área delimitada de produção, que atualmente abriga cerca de 6.800 hectares plantados com essa variedade nas províncias de Bologna, Ravenna, Forli-Cesena e Rimini. A possibilidade de menção a essas subzonas, que confeririam peculiaridades locais às uvas nelas cultivadas, poderá provavelmente ser adicionada aos rótulos do novo Romagna Sangiovese da colheita 2011. Uma das doze subáreas, Bertinoro, poderá ser usada exclusivamente nos vinhos com a distinção Riserva, em tese os melhores da região, que só podem ser comercializado após três anos de envelhecimento.
Talvez a troca de nome das DOCs seja muito sutil para produzir resultados concretos. Mas o gesto tem lá sua lógica. A Romagna parece ter se dado conta de que não tem cacife para jogar o jogo dos vinhos vendidos apenas como simples varietais, ou seja, que destacam basicamente o nome de sua uva majoritária nos rótulos como se esse fosse seu maior diferencial. Nenhuma das uvas plantadas em seu território é muito conhecida ou tem grande prestígio junto ao consumidor médio. A exceção, claro, é a Sangiovese. Mas outras regiões italianas também plantam a variedade e a vizinha Toscana, sempre uma enorme sombra à Romagna vitícola, é a casa por excelência dessa cepa. A alternativa então é valorizar o sabor do solo romagnolo, real ou imaginário, que estaria impresso em seus tintos e brancos.
O Lambrusco é a prova de que essa rica parte da Itália sabe produzir vinhos simples, baratos e extremamentte comerciais. Com uma área de vinhedos que ultrapassa os 56 mil hectares e uma produção anual da ordem de 650 milhões de litros de vinho, a Emilia-Romagna oscila entre o segundo e o terceiro lugar no ranking das regiões da Velha Bota que mais produzem tintos e brancos. O desafio, em especial para a Romagna, é fazer mais rótulos de qualidade internacional e seduzir uma parcela do público mundial que aprecia vinhos italianos.
Mudar o foco das DOCs locais pode até ajudar, mas será preciso mais do que uma canetada na lei para fazer os consumidores deixarem um pouco de lado o presunto de Parma e o parmesão e se concentrarem nos Sangiovese locais. “Produzimos carros famosos. Somos a terra do (tenor) Luciano Pavarotti, do (compositor clássico) Giuseppe Verdi”, comenta Gian Alfonso Roda, presidente da Enoteca Regionale Emilia Romagna, associação criada em 1970 para promover a produção local e que hoje conta com 243 membros. “Mas temos de falar um pouco mais dos nossos vinhos, e não apenas da comida.”
* Esta reportagem foi publicada na edição de abril de 2011 do jornal A Vindima.
* O jornalista Marcos Pivetta viajou para Faenza a convite de uma associação de oito produtores locais de vinho, a Convito di Romagna
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