A hora e a vez da África do Sul
Desde o fim do apartheid, o país sede do Mundial de 2010 vem se firmando como produtor de vinhos de qualidade
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
22/06/2010
A Copa do Mundo fornece um bom pretexto para conhecer uma força mais do que emergente no mundo dos tintos e brancos, os vinhos sul-africanos. Com um clima de estilo mediterrâneo, uma paisagem marcada por belas montanhas e vales e um remoto passado vitivinícola sem paralelo entre as nações de fora da Europa, a África do Sul voltou a ser um competidor respeitável no mercado internacional a partir de meados dos anos 1990, após o fim do apartheid e a redemocratização política do país, com a ascensão da maioria negra ao poder. Desde então, a terra do Mundial de 2010 se dedica a recuperar as décadas perdidas durante a vigência do odioso regime de segregação racial, quando se isolou do mundo e o mundo, em represália, se fechou a seus produtos, vinhos inclusive. Hoje o país produz anualmente cerca de 750 milhões de litros de vinho a partir de um vinhedo que se estende por 100 mil hectares entre os paralelos sul 27° e 34° (a cifra não inclui o produto de 25% a 30% da uva colhida que são destinados à fabricação de brandy, destilados em geral e sucos). As principais regiões vinícolas, como Stellenbosch, Paarl, Worcester, Robertson e a histórica Constantia, onde o primeiro parreiral foi plantado pelos conquistadores holandeses em 1655, se concentram na província do Cabo Ocidental, na ponta sul do país, a esquina do mundo em que o oceano Atlântico se encontra com o Índico.
Segundo dados da Wines of South Africa, entidade que promove os vinhos daquele país no exterior, a África do Sul exportava 50 milhões de litros da bebida em 1994, ano em que Neldon Mandela foi eleito presidente. No ano passado, a cifra foi oito vezes maior: 400 milhões de litros, mais da metade de produção nacional, foram destinados ao estrangeiro. No início de 2010, os sul-africanos comemoraram mais um feito. Pela primeira vez, ultrapassaram em volume de vendas os franceses no mercado inglês, um dos mais disputados do mundo e destino número um de seus vinhos no exterior. Eles se tornaram o quarto maior fornecedor da bebida aos consumidores britânicos, atrás apenas dos australianos, californianos (EUA) e italianos. O sucesso na exportação se deve à boa relação preço/qualidade dos tintos e brancos sul-africanos, dos quais ainda uns 40% são vendidos a granel, não engarrafados, a compradores sobretudo da Europa e da América do Norte. Embora haja hoje 600 produtores individuais que elaboram seu próprio vinho entre os 4 mil viticultores do país, cerca de 80% das uvas colhidas ainda são esmagadas pelas 59 cooperativas sul-africanas. Até os anos 1990, eram elas que ditavam literalmente os rumos da vitivinicultura local, determinando o que e quanto se podia vindimar. Esse tempo está ficando para trás e o consumidor atual não deve pensar que a pátria do Mundial de futebol de 2010 só tem vinhos simples e baratos a oferecer.
Com viagens regulares à África do Sul em seu currículo, tendo inclusive trabalhado lá durante parte de uma safra, Dirceu Vianna Junior, único brasileiro com o cobiçado título de Master of Wine, faz elogios à versátil produção vinícola daquele país. Segundo Vianna, os sul-africanos são capazes de elaborar vinhos de estilos distintos, desde os mais simples para o dia a dia até os de altíssima qualidade. “A África do Sul conta com uma grande diversidade de produtos: espumantes frescos no mesmo estilo de champanhe, excelentes brancos e tintos de uvas clássicas (francesas), além de vinhos de sobremesa e fortificados”, diz o brasileiro, que é diretor de desenvolvimento de vinhos da importadora inglesa Coe Vintners e mora em Londres há duas décadas. “A maioria dos consumidores associa a África do Sul às uvas Chenin Blanc (branca) e Pinotage (tinta). Mas eu acho que os melhores brancos deles são os Sauvignon Blanc e os tintos certamente os Cabernet Sauvignon e os Shiraz/Syrah. Não resta dúvida de que a maioria dos vinhos da África do Sul tem qualidade suficiente para se equiparar com vinhos da Austrália, Chile e Argentina. No geral, a indústria de vinhos sul-africana está bem mais adiantada do que a brasileira”.
A latitude em que ocorre o plantio de videira e a produção de vinhos na região do Cabo remete a uma vitivinicultuta de clima quente. Mas a influência de brisas marinhas e da fria corrente de Benguela ajuda a amenizar o calor nos vinhedos, muitos situados a menos de 50 quilômetros do mar. Como as chuvas estão concentradas entre o outuno e o inverno, entre maio e agosto, há necessidade de irrigar a uva no período de estiagem. “Os vinhedos têm problemas na época de seca e as empresas precisam estocar água”, diz Júlio Gobatto, assistente de promoção do projeto Wines from Brazil do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), que visitou a região de Stellenbosch em 2008. A África do Sul (ainda) faz mais vinhos brancos do que tintos. Atualmente 55% da produção é de brancos e 45% de tintos, embora isso esteja mudando rapidamente devido à grande taxa de replantio e reconversão de vinhedos nas duas últimas décadas. Em 1990, esses números eram 84% de brancos e apenas 16% de tintos. A Chenin Blanc, lá também chamada de Steen, é a cepa clara mais cultivada e representava 19% de todos os vinhedos do país em 2008, seguida da Colombard (12%). Mas variedades francesas mais nobres, como a Chardonnay (9%) e Sauvignon Blanc (8%) não param de ganhar terreno. No entanto, o crescimento mais espetacular nas últimas décadas se deu entre as uvas tintas. A Cabernet Sauvignon responde por cerca de 13% de todos os parreirais sul-africanos. A seguir, aparecem a Syrah/Shiraz (10%), a Merlot (6,5%) e a Pinotage (6%). Invenção sul-africana de 1925, fruto do cruzamento das uvas Pinot Noir e da Cinsault (chamada na África do Sul de Hermitage), a Pinotage não emplacou internacionalmente como uva emblemática do país. Dá um vinho escuro que tem mais detratores do que defensores.
É interessante notar que nessa renascença da vitivinicultura na África do Sul o estilo de vinho que primeiro conferiu fama mundial à região do Cabo tornou-se hoje quase uma mera relíquia de um tempo glorioso que nunca mais voltou. A história é bem conhecida, mas sempre vale a pena lembrá-la. Como os holandeses entendiam mais de beber e vender bebidas alcoólicas — a Cidade do Cabo era uma parada obrigatória dos mercadores da Companhia das Índias Orientais em suas longas viagens –, a vitiviniculta só teve um impulso para valer nas décadas de 1680/1690, quando desembarcaram ali um grupo de 150 franceses huguenotes. Esses, sim, eram do ramo e um século mais tarde um vinho sul-africano era aclamado na Europa, no coração vinícola do mundo. Na segunda metade do século XVIII, havia apenas um vinho elaborado fora da Europa que rivalizava em preço e prestígio com os melhores do Velho Mundo: o legendário, aromático e concentrado vinho de sobremesa oriundo dos domínios de Constantia, a antiga fazenda de 750 hectares fundada pelo segundo governador holandês Simon van der Stel, em 1685, nos arredores da Cidade do Cabo. Das terras próximas à encosta sul da Montanha de Mesa, elevação que é hoje um dos cartões-portais da África do Sul, saíam versões brancas e tintas (essas um pouco menos caras) de um néctar doce feito basicamente com uvas colhidas tardiamente da variedade Muscat Blanc à Petits Grains e, em menor escala, de uma mutação tinta dessa casta, da Chenin Blanc e da também tinta e obscura Pontac. Amado por nobres e pela aristocracia de toda da Europa, como Napoleão que o bebia em seu exílio na ilha de Santa Helena, o Constantia era o melhor vinho do hemisfério Sul. Foi, por assim dizem, o primeiro vinho de classe mundial elaborado fora do Velho Mundo.
O problema é que a fama do Constantia não durou tanto tempo assim. Já no final do século XIX esse vinho perdia prestígio, assim como o restante da produção sul-africana. Um dos motivos da decadência foi a chegada à África do Sul da filoxera, pulgão que ataca a raiz da vinha. Em 1886, em razão da doença, que também quase acabou com a vitivinicultura na Europa, milhões de parreiras foram destruídas na região do Cabo. O Constantia simplesmente desapareceu. A saída da crise se deu já no início do século XX, quando foram criadas as primeiras cooperativas de produtores. A vitivicultura renascia na África do Sul, mas sob o comando das cooperativas, que investiam mais em quantidade do que em qualidade. Com a adoção do regime do apartheid em 1948, o desinteresse internacional por tintos e brancos sul-africanos só fez aumentar. A partir dos anos 1990, com a redemocratização política, ocorreu o segundo renascimento do vinho na região do Cabo, dessa vez, assentado sob uma melhor e mais moderna base produtiva (embora nos parreirais o predomínio de trabalhadores negros ainda seja esmagador e os donos de vinícolas sejam quase todos brancos). Como forma de emular um passado de glórias, meia dúzia de produtores voltaram a produzir, há cerca de 20 anos, um vinho doce de sobremesa, nos moldes do antigo Constantia, nas mesmas terras em que esse vinho era elaborado no século XVIII. Hoje o vinho se chama Vin de Constance.
No Brasil, a presença de rótulos sul-africanos ainda é pequena. Por ora, eles são mais uma curiosidade do que um verdadeiro competidor no mercado nacional. Alguns supermercados têm uns poucos rótulos, em geral vinhos simples e baratos, como os que lançam mão de desenhos tribais para chamar a atenção do consumidor. As importadores trazem ao país, ainda discretamente, nomes mais conhecidos e renomados da vitinicultura da região do Cabo, alguns impronunciáveis para os falantes de português. A Mistral, a maior importadora do país, representa os vinhos da De Wetshof, da Boekenhoutskloof, da Kanonkrop (especialista em Pinotage) e da biodinâmica Reyneke. A Vinci traz os rótulos da Robertson Winery e da Engelbrecht Els. A Decanter comparece com a produção da Raka e a Grand Cru, com a badalada Glen Carlou. A Casa Flora/Porto a Porto traz os vinhos da Fleur du Cape e da Nederburg, que, aliás, fez um trio de rótulo especialmente para a Copa do Mundo: o Nederburg Twenty 10, nas versões branco, tinto e rosé. Procurando em outras importadoras, encontram-se ainda mais alguns nomes da terra de Mandela. Como se vê, apesar da oferta ainda pequena, dá para acompanhar sem problemas o Mundial de 2010 com vinhos sul-africanos.
*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de junho de 2010 do Bon Vivant
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