A ciência como prato principal
Em visita ao Brasil, o físico-químico francês Hervé This fala sobre como a gastronomia molecular pode mudar a forma de preparar alimentos
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
04/01/2008
Não é preciso ser um fanático por alta gastronomia para já ter ouvido falar do chef Ferran Adrià, visto por muitos como a vanguarda da culinária do século XXI. Já há algum tempo, o espanhol é o cozinheiro mais famoso do mundo, ocupando um lugar que parecia eternamente cativo dos franceses. À frente do El Bulli, um pequeno restaurante situado na Costa Brava da Catalunha que abre apenas de abril a setembro, Adrià faz uma cozinha rica em texturas e subversões tecnocientíficas, daquelas que proporcionam experiências gustativas aos comensais ao longo de uma refeição que pode ter dezenas de (micro) pratos estranhos. Um sorvete de parmesão, uma gelatina quente, esferas gelificadas com nhoque, ravióli ou caviar e por aí vai. Nem de longe, o espanhol é o único a fazer isso hoje. Na Inglaterra, até recentemente um dos países europeus com fama de ter uma das piores cozinhas do mundo, há o fenômeno Heston Blumenthal, o comandante das panelas (e do nitrogênio líquido a -196°C) do Fat Duck, em Bray, a cerca de uma hora de Londres. Em Paris, onde não faltam talentos estrelados das caçarolas, uma das sensações culinárias é Pierre Gagnaire, cujo estabelecimento carrega seu nome. Não é de se estranhar que, em 2006 e novamente em 2007, as casas comandadas por Adrià, Blumenthal e Gagnaire se mantiveram, sempre nessa ordem, nos três primeiros lugares da lista dos melhores restaurantes do mundo elaborada pela revista inglesa Restaurant.
Esses três chefs badalados, e muitos outros que despontam mundo afora, como o brasileiro Alex Atala do restaurante DOM em São Paulo (38° lugar no ranking da Restaurant neste ano), praticam, cada um a seu estilo, com maior ou menor intensidade, o que se convencionou chamar de cozinha molecular. Num meio que privilegia a tradição e, por vezes, crendices culinárias que passam de geração em geração, os executores dessa nova cozinha não hesitam em lançar mão dos conhecimentos da ciência, em especial da química e da física, para criar e elaborar seus pratos. E quem gera o conhecimento científico que, muitas vezes, serve de base para o trabalho dos chefs mais inventivos da atualidade? Com certeza, um bom número de estudiosos e pesquisadores do tema, mas nenhum deles tão importante quanto o francês Hervé This, um físico-químico de 52 anos que mora nos arredores de Paris e é considerado, ao lado do falecido físico húngaro Nicholas Kurti, que fez carreira na Universidade de Oxford, um dos pais da gastronomia molecular vista como disciplina da ciência dos alimentos.
Embora saiba cozinhar, This, que esteve em São Paulo no final de outubro para dar palestras e lançar três edições especiais da revista Scientific American dedicadas à gastronomia molecular, não é chef de cuisine. É cientista do Institute Nationale de la Recherche Agronomique (Inra) e do prestigioso Collège de France, onde, a convite do prêmio Nobel de Química Jean-Marie Lehn, ministra cursos e faz experimentos desde 1995 de gastronomia molecular. Ele se dedica a estudar, com o rigor da metodologia científica, as entranhas das receitas culinárias. Quer saber por que elas funcionam ou não e determinar o papel de cada ingrediente – e dos componentes desse ingrediente – numa determinada preparação culinária. This, portanto, não cria receitas, ainda que seu trabalho inspire alguns chefs a inventar novos pratos. Seu amigo Pierre Gagnaire, por exemplo, todo mês bola alguma receita nova a partir das idéias, experiências e descobertas do físico-químico. O pesquisador dá o tema e Gagnaire inventa um prato, cuja receita (em francês) está disponível para qualquer pessoa que consulte o site www.pierre-gagnaire.com. A mais recente idéia proposta pelo físico-químico foi “cozinhar com crosta de açúcar, fritar em açúcares”. Desta vez, Gagnaire inventou não uma, mas duas formulações para ilustrar a questão levantada por This, ambas de simples execução (veja quadro ao lado).
O leitor há de perguntar: para que servem exatamente os estudos de This e de outros pesquisadores da gastronomia molecular, um ramo da ciência dos alimentos fundado no fim dos anos 1980? Em poucas palavras, eles querem mudar a forma como se cozinha em casa e nos restaurantes. Estão em busca de uma culinária mais racional, em que o cozinheiro entenda por que está usando um determinado ingrediente ou adotando um certo procedimento. Para os cientistas da cozinha, a arte de transformar produtos de origem vegetal ou animal em alimentos comestíveis parou no tempo e se encontra presa a receitas que, não raro, usam ingredientes desnecessários (ou que não são os melhores) ou promovem procedimentos inúteis ou de função ignorada. “É uma loucura, mas ainda cozinhamos como na Idade Média”, disse This, em sua passagem por São Paulo. “Somos muito apegados à tradição e seguimos livros antigos com receitas que deveriam estar em museus.”
Na busca por explicações dos processos físico-químicos que ocorrem com os alimentos no interior das panelas ou nos fornos, This faz a si mesmo questões que podem parecer tolas para outros cientistas, mas que são dúvidas eternas de quem lida com as caçarolas, de forma amadora ou profissional. É verdade que, como muita gente acredita na França, a maionese feita por mulheres menstruadas desanda? Não, não é verdade, isso não passa de crendice, diz This. Cortar a cabeça de um porco assado logo após retirá-lo do forno realmente ajuda a manter a pele do suíno crocante, como já diziam livros de culinária de séculos atrás? Sim, esse procedimento funciona, pois permite que o vapor d’água preso no interior do porco escape por um orifício. Evita-se assim que a pele do animal amoleça. Algumas descobertas de This não têm efeitos práticos, pelo menos não que se saiba. Ele, por exemplo, encontrou uma forma de “descozinhar” um ovo, algo de pouca serventia para um mestre-cuca. Basta jogar uma pitada do agente redutor boroidreto de sódio, NaBH4, sobre o ovo e esperar três horas para que ele se torne líquido de novo. O francês também determinou a temperatura ideal para se aquecer um ovo a fim de que a clara fique com a máxima maciez possível sem endurecer a gema. Testes feitos em seu laboratório revelaram que 65°C é a melhor alternativa. Ainda no terreno das claras e gemas, This criou uma receita de um chantilly de chocolate (ou, se o cozinheiro preferir, de um chantilly de queijo o de ifoie gras) que não necessita de ovos em sua execução.
Sob a ótica da ciência, cada parte de um prato culinário pode ser descrita esquematicamente como um sistema disperso ou coloidal, uma mistura homogênea na qual uma substância se divide em partículas diminutas e se espalha em meio a uma segunda substância. Não é uma maneira muito atraente de lançar o olhar sobre um pudim ou uma lasanha, mas ajuda a entender a arquitetura interna de uma receita. Por esse prisma, três fases da matéria podem estar envolvidas num prato (os sólidos, os líquidos e os gasosos). Esses estados podem estar dispersos, misturados, introduzidos um no outro ou superpostos. Raramente uma preparação culinária é totalmente sólida, o que seria difícil de engolir, ou líquida (nesse caso, seria uma bebida, não uma comida). This desenvolveu até uma forma de notação com letras e umas poucas palavras para representar os tipos de ingredientes e procedimentos que entram na execução de um prato. Coisa realmente de cientista.
Dono de uma personalidade forte, sem papas na língua e vestindo sempre camisas com gola de padre, o físico-químico francês não só produz conhecimento científico sobre o fazer culinário. Ele também o dissemina como poucos. É um grande divulgador dos estudos sobre alimentos, feitos por ele ou por outros pesquisadores. Já teve programa na televisão francesa, é colaborador de revistas de divulgação científica e publicou vários livros sobre o tema, como Um Cientista na Cozinha e A Cozinha das Crianças, ambos editados também em português. Na França, está ainda à frente da Fundação Ciência & Cultura Alimentar, fundada no ano passado. Em suas palestras, fala como uma metralhadora giratória e gesticula mais que um italiano típico. É impossível não prestar a atenção nele. “Pessoas como Hervé This, que conseguem enxergar caminhos alternativos e abrir novas trilhas, são grandes mestres, gênios”, escreveu Alex Atala, num artigo publicado numa das edições da Scientific American dedicadas à gastronomia molecular. “O que ele faz pode ser um pequeno passo para a ciência, mas, sem dúvida, é um grande passo para a gastronomia.”
COZINHANDO COM O AÇÚCAR
Embora não tenha a mesma estabilidade térmica do sal, o açúcar poderia ser mais usado para cozinhar ou até mesmo fritar alimentos, diz Hervé This. Segundo o pesquisador, o açúcar somente se carameliza se for aquecido a mais de 140°C. Para criar uma crosta branca de açúcar em torno de um alimento, uma casca dentro da qual o ingrediente escolhido será cozido, basta então não expor o prato em preparação a temperaturas acima desse limite. Dessa forma, pode-se usar o açúcar para criar um ambiente fechado (a crosta) no interior da qual o alimento cozinha de forma branda e sem adquirir muito do sabor doce tão característico da sacarose. É o mesmo principio da crosta de sal usada para cozinhar peixes, a qual igualmente não transmite ao pescado um gosto excessivamente salgado. A partir dessa idéia do cientista, o chef Pierre Gagnaire criou duas receitas muito simples.
Maça na crosta de açúcar
Ingredientes (para quatro pessoas)
– quatro porções de maçã gala (ou de outro tipo)
– 2 quilos de açúcar de confeiteiro
– 160 gramas de clara de ovo
Preparação
– Numa grande travessa, amassar o açúcar com a clara de ovo
– Retirar os cabinhos das maças sem ferir as cascas
– Revestir cada uma das maças de uma camada de uniforme de açúcar
– Colocar os quatro pedaços de maçã com açúcar num prato fundo que vai ao forno
– Cozinhar por duas horas a 140° C
– Tirar do forno e deixar repousando por 30 minutos
– Quebrar a casca de açúcar para descobrir as maçãs cozidas
Pimentão vermelho na crosta de açúcar
Ingredientes
– quatro porções de pimentão vermelho de tamanho médio
– 2 quilos de açúcar de confeiteiro
– 160 gramas de clara de ovo
Preparação
– Numa grande travessa, amassar o açúcar com a clara de ovo
– Revestir cada um dos pimentões de uma camada de uniforme de açúcar
– Colocar os pimentões com açúcar sem que eles se toquem num prato fundo que vai ao forno
– Cozinhar por uma hora e meia a 140° C
– Tirar do forno e deixar repousando por 30 minutos
– Quebrar a casca de açúcar para ver os pimentões cozidos
*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de dezembro do jornal Bon Vivant
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