Mulheres do vinho
Cada vez mais presentes nas vinícolas, enólogas falam dos preconceitos e das características de seus rótulos
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
22/02/2007
Na história do vinho, houve mulheres fortes que deixaram sua marca num meio tradicionalmente dominado por homens. Um exemplo clássico: Nicole-Barbe Clicquot-Ponsardin, a veuve Clicquot, que, viúva aos 27 anos e mãe de uma filha de 3 anos, revolucionou a casa de champanhe da família no início do século 19 e ficou conhecida como a inventora do remuage, procedimento destinado a retirar as borras de levedura das garrafas de champanhe. Mas a veuve Clicquot e outras mulheres de fibra do passado sempre foram exceções que confirmavam a regra: fazer vinho era um métier eminentemente masculino. Até hoje é assim. No entanto, nas últimas duas ou três décadas, como em quase todas as profissões, mais e mais mulheres passaram a elaborar tintos e brancos. Em qualquer lugar do mundo em que o suco da uva fermante e vire vinho, elas ainda são minoria, é verdade. Mas não é mais possível ignorá-las. Elas chegaram às vinícolas – e chegaram para ficar.
Em homenagem ao Dia Internacional das Mulher, comemorado no próximo dia 8 de março, esta matéria conta um pouco da trajetória de quatro enólogas, três brasileiras e uma francesa, de distintas gerações. Elas falam de eventuais preconceitos que tiveram de enfrentar para seguir sua vocação e sobre as características dos vinhos feitos por mãos mais delicadas que as dos homens. Seriam esses vinhos, por definição, mais femininos que os demais, elaborados por seus colegas do sexo oposto? Com a palavra, as enólogas.
Monica Rosseti, da Lidio Carraro
Um dos rostos mais conhecidos da nova geração de enólogas brasileiras, Monica Rosseti, diretora técnica da vinícola Lidio Carraro, não chega a dizer que foi discriminada por ser mulher e muito jovem (tem apenas 24 anos) num meio profissional eminentemente masculino e dominado por colegas mais experientes. “Não diria que sofri preconceito, mas, sem dúvida, ser mulher e jovem causa um impacto visível em muitas pessoas, principalmente porque tenho responsabilidades tradicionalmente atribuídas aos homens”, afirma Monica, que se formou nos cursos técnico e superior de enologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Bento Gonçalves e hoje faz especialização na Itália. Ela se lembra de, por exemplo, ter ouvido frases mais ou menos assim: “mesmo merecendo, as mulheres não são tão respeitadas quanto os homens. Não adianta querer conquistar espaço. Na enologia é assim”. Houve ainda quem lhe aconselhasse a ocultar sua idade, argumentando que sua juventude poderia ser confundida com falta de responsabilidade.”Confesso que isso me revoltou um pouco, pois não partilho dessas opiniões tão limitadoras”, admite Monica. “Isso é reflexo de uma sociedade patriarcal.”
Mas seria exagero dizer que o fato de ser mulher e jovem só lhe trouxe dissabores na profissão. Ao contrário. Monica também se recorda de muitas palavras de incentivo e admiração por sua rápida e bem-sucedida trajetória. E acredita que os comentários elogiosos foram em maior número que as minifestaçãoes preconceituosas. Na Itália, onde passa longas temporadas de estudo e trabalho, algumas pessoas nem acreditavam que a jovem enóloga, que fala bem a língua de Dante Alighieri e tem dupla cidadania, era uma estrangeira. “Quando dizia ser brasileira, havia quem ficasse inicialmente surpreso e admirado”, conta a enóloga, que se apaixonou pelo vinho aos 15 anos. “Eles se espantavam com todas as atribuições que tenho e gostavam do meu meu vinho!”
Segundo Monica, pode-se falar poeticamente em vinhos com um caráter mais feminino e outros de estilo mais masculino. “Mas esses estilos não dependem somente da vontade do enólogo, seja ele homem ou mulher”, pondera. Dependem da interação do vinhedo com o microclima. “O potencial da uva, o trabalho vitícola e o ambiente são os maiores responsáveis pelo “sexo” dos vinhos, mais do que a influência do sexo dos enólogas. É preciso ter sensibilidade para trabalhar com a natureza e entender o seu potencial. A mulher tem a missão de gestar a vida e esse respirar materno, de doação e sentimento, é uma ferramenta para se relacionar com as pessoas, as uvas e os vinhos. A minha filosofia é ajudar a nascer “meninos’ e “meninas”, dependendo do contexto e da vocação natural. Não quero manipular os vinhos, mas sim revelar sua autenticidade.”
Chantal Comte, do Château de la Tuilerie, França
Dona do Château de la Tuilerie, uma conhecida propriedade em Costières de Nîmes, no sul da França, Chantal Comte começou seu trabalho de enóloga em 1981. Naquela época, não havia muitas mulheres fazendo vinho em seu país. Mas isso não quer dizer que ela penou por ser uma exceção no meio de vitivinicultores do sexo oposto. “Nunca tive do que reclamar. O fato de ser mulher foi, na maioria das vezes, uma vantagem”, diz Chantal, cujos vinhos são importados no Brasil pela Mistral. “Os jornalistas estavam muito interessados na minha opinião.” Na verdade, havia, sim, uma desvantagem: ela acredita que teve de estudar e trabalhar mais do que se fosse homem para provar que seus vinhos tinham valor.
Para a enóloga, não há diferenças significativas entre vinhos feitos por homens e mulheres. “Não faço nenhuma distinção desse tipo, somente diferencio o vinho bom do ruim.”, afirma. Chantal, no entanto, acredita que as mulheres sejam mais sinceras e desinibidas na hora de provar vinhos e formular uma avaliação do produto. “Pessoas de ambos os sexos podem ser bons degustadores. Mas talvez as mulheres tenham uma relação mais natural com o ato de degustar ou simplesmente com o ato de sentir fragrâncias”, pondera. “Elas ousam dizer exatamente o que pensam ou sentem enquanto os homens não gostam de errar e preferem ser um pouco mais convencionais nessa atividade.”
Apesar de pensar assim, a enóloga francesa acha que atualmente mulheres e homens compartilham praticamente dos mesmos gostos e preferências na hora de escolher um tinto ou branco. “Quando começam a beber vinhos, as mulheres gostam de produtos mais doces e macios, mas rapidamente elas passam a dividir e tomar os mesmos vinhos que os homens. Hoje muitas mulheres apreciam vinhos mais encorpados”, diz. A divisão do mundo dos vinhos de acordo com o sexo do consumidor não faz tanto sentido hoje em dia. Antigamente, nota Chantal, quando, a exemplo do poder, a linguagem dos fermentados da uva era um território de domínio exclusivamente masculino, predominava essa noção pré-estabelecida de vinhos para mulheres (os doces e o champanhe) e de vinhos para homens (tintos tânicos e estruturados). “As mentalidades evoluíram, embora ainda restem traços desses tabus.”.
Vanessa Stefani, da Casa Perini
Outra representante da nova geração de profissionais que fez o curso superior em viticultura e enologia no Cefet de Bento Gonçalves, Vanessa Stefani, de 24 anos, encontrou rapidamente seu espaço nas vinícolas da Serra Gaúcha. Logo no início da faculdade, quando ainda tinha dúvidas se seguiria no métier, essa descendente de italianos estagiou na De Lantier, experiência que lhe fez tomar gosto pelo trabalho de elaborar vinhos. Hoje está há um ano e meio na vinícola Casa Perini, que tem unidades produtivas em Farroupilha e Garibaldi, onde faz parte do time de quatro enólogos da casa, composto de dois homens e duas mulheres. Vanessa, que teve um avô vinhateiro (com quem não teve contato) e tem uma cunhada que presta assessoria na área de relações públicas para um vinícola, participa de várias atividades na Perini, como a supervisão da produção e engarrafamento dos rótulos da casa e cuida mais diretamente do processo de elaboração dos espumantes. “Na minha turma da faculdade, havia um pouco mais de mulheres do que homens”, diz Vanessa. “Antigamente, a maioria das mulheres que estudavam enologia acabava trabalhando na área comercial ou nos laboratórios das cantinas (vinícolas). Agora boa parte delas faz vinho.”
Para Vanessa, as vinícolas da Serra Gaúcha estão abertas à presença da mulher em seus quadros. “Hoje o setor sabe respeitar a opinião das jovens enólogas”, diz. Como prova disso, cita o fato de ela mesma, apesar da pouca idade, fazer parte do quadro de diretores da Associação Brasileira de Enologia (ABE). Ela não acredita que um vinho seja melhor ou diferente só por ser feito por uma mulher (ou um homem). “Tudo que é feito com amor, sai melhor, independentemente do sexo do enólogo”, pondera. Vanessa, no entanto, acha que as mulheres têm maior sensibilidade como degustadoras. “Isso é um fato. As mulheres são capazes de encontrar mais nuances num vinho e são boas para realizar cortes (misturas) de vinhos. Mas é importante trabalhar em conjunto, com os homens, de forma a equilibrar as preferências individuais”. Ela não faz gosta de fazer distinções genéricas entre um paladar feminino e outro masculino. “Vinho é relativo, é questão de gosto. Talvez a maioria das mulheres prefira vinhos doces, mas há também as que gostam de tintos encorpados”, afirma.
Rosana Wagner, da Cordilheira de Sant’Ana.
Recém-formada em engenharia química em 1984, num tempo em que não havia curso superior de enologia no Brasil, Rosana Wagner lembra de uma cena do começo de sua vida profissional. Numa reunião do corpo gerencial da empresa em que trabalhava, a National Distillers do Brasil, em Sant’Ana do Livramento, no Rio Grande do Sul, perto da fronteira com o Uruguai, ouviu as seguintes palavras do presidente da companhia numa reunião com a gerência: “todos aqui têm um objetivo, mas eu não consigo entender muito bem o objetivo das mulheres presentes.” Havia somente duas mulheres na reunião, a secretária do presidente e Rosana. O incidente não impediu a a enóloga de fazer uma longa e bem-sucedida carreira na empresa, que depois passou a ser controlada pela Seagram e mais recentemente pela Pernod Ricard Brasil, tendo chegado ao cargo de gerente industrial. Embora tenha se deparado com o preconceito em outras ocasiões, Rosana acredita que o fato de ser mulher representava (e ainda representa) um diferencial na carreira. “A mulher sempre foi vista como detalhista, organizada e sensível”, diz.
Em 2004, depois de ter sido por quase duas décadas a responsável técnica pela elaboração do vinhos da antiga National Distillers, a enóloga se desligou da empresa para se dedicar com exclusividade a seu projeto pessoal, a vinícola Cordilheira de Sant’Ana, fundada com o marido, Gladistão Omizzolo, também enólogo, em Sant’ana do Livramento. Para a enóloga, falar em sexo das uvas (e dos vinhos) faz sentido. Uma cepa como a branca Gewurztraminer, que é aromática, delicada e fina, pode ser definida como feminina. Já a tinta Tannat, que é resistente, áspera e tânica, é mais masculina. Mas isso não significa que haja uma divisão no mundo dos vinhos. “Os homens também gostam de beber vinhos femininos e vice-versa”, afirma.
Ela não defende a idéia de que as mulheres produzam vinhos mais delicados e refinados do que os homens. Mas diz que as profissionais do sexo feminino são mais perfeccionistas e pacientes enquanto os homens são mais racionais e rápidos. “O mundo do vinho é lento, requer paciência”, afirma. “Quem melhor do que uma mulher, privilegiada por Deus com o dom da fertilidade, para entender o nascimento e desenvolvimento de um vinho?”
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*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de fevereiro de 2007 do jornal Bon Vivant
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Ana Lucia,
Minha sugestão é ler os livros da Jancis Robinson e do Hugh Jonhson (História do VInho). Eles são uma boa introdução ao mundo do vinho. E tente degustar vinhos com um grupo de pessoas. A gente aprende muito nesses encontros.
Boa sorte.
Marcos
Olá. Parabéns para vcs em breve farei parte também desse grupo de mulheres enóloga.
Por favor, poderiam enviar apostilhas e indicar livros, pois, só apaixonada por enologia e na minha cidade não tem curso, Ilhéus-Bahia e faço curso de gastronomia. Quero unir o util ao agradável. Mim ajudem por favor.
Beijos. Facebook ana lucia jspottier.