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O arqueólogo dos fermentados

O pesquisador Patrick McGovern fala sobre o mais antigo vestígio de vinho, de 9 mil anos de idade, encontrado na China

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com*

08/11/2006

O pesquisador americano identificou restos de vinho em fragmentos cerâmicos de vasos chineses semelhantes aos que aparecem nesta imagem (Foto: Juzhong Zhang e Zhiqing Zhang/Institute of Cultural Relics and Archaeology of Henan Province)

É inegável que o vinho era parte central da vida na antiga Grécia e também em Roma, sua sucessora e grande difusora da cultura helênica pelo Ocidente. Mas, sabe-se hoje, as origens do fermentado de uva ultrapassam em muito os três mil anos de história que nos separam dos primeiros habitantes da Élida. Quem quiser conhecer a fundo o início do processo de conquista da vinha terá de ir mais a leste do Mediterrâneo, deixar Grécia e Roma para trás e entrar na Ásia. E, em termos cronológicos, terá de recuar bem mais do que três milênios. É o que o arqueólogo molecular Patrick McGovern, da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, talvez o principal estudioso do nascimento primordial do vinho (e da cerveja), tem feito nas últimas duas décadas. Parte desse trabalho está descrito em seu livro Ancient Wine: The Scientific Search for the Origins of Viniculture (Princeton University Press), publicado em 2003. Mas seus mais recentes achados são posteriores à impressão da obra.

Com o auxílio de sofisticadas análises químicas de restos de bebidas preservados em potes de cerâmica que remontam ao período Neolítico, também chamado Nova Idade da Pedra, McGovern expandiu ainda mais as fronteiras, geográficas e temporais, da pré-história associada à produção de bebidas alcoólicas. No final de 2004, o pesquisador divulgou uma descoberta capital: a confirmação da presença de resíduos de um fermentado – uma mistura de arroz, mel e frutas (uva e/ou pilriteiro, arbusto da família das rosáceas de sabor adocicado) – em pedaços de vasos de 9 mil anos encontrados na China. Embora seja difícil afirmar com certeza se o preparado se assemelhava mais a vinho, saquê ou até mesmo cerveja (apesar da ausência de cevada), esse é o fermentado com uvas (mas não apenas isso) mais antigo do qual se tem alguma evidência científica. Para falar sobre seu trabalho, McGovern – defensor da hipótese Noé, segunda a qual a vinha foi domesticada em apenas um ponto do globo, no Oriente Médio, e, desse local, essa versão cultivável da cepa teria sido introduzida em outros lugares – concedeu uma entrevista por email:

Até recentemente, muitos estudiosos acreditavam que o vinho havia surgido perto do Cáucaso, talvez na Geórgia ou Irã, há uns 7 mil anos. Mas, no final de 2004, o senhor publicou um trabalho dando conta da existência de bebidas fermentadas na China cerca de 9 mil atrás. Qual é, no momento, a informação mais atualizada sobre as origens do vinho?

O fermentado mais antigo feito com uvas, até agora comprovado quimicamente, é o da China, encontrado em cerâmicas do sítio arqueológico de Jiahu, na província de Henan, nordeste do país. Suspeito que a produção em larga escala de vinho, às vezes acompanhada da domesticação da vinha (até o momento, esse feito foi apenas comprovado no Oriente Médio), tenha ocorrido tanto no oeste como no leste da Ásia mais ou menos ao mesmo tempo, cerca de 7 mil anos a.C, talvez antes disso. Acredito que os avanços no Oriente Próximo (sudoeste da Ásia) e na China estavam interrelacionados. Ou seja, a domesticação de plantas e animais, as sociedades complexas, o desenvolvimento de bebidas fermentadas, etc, tudo isso estava se desenvolvimento em ambas as áreas, por volta de 10 000-7 000 a.C.

Qual é o registro mais antigo de produção de cerveja?

A mais antiga confirmação química vem do sítio de Godin Tepe (nas montanhas Zagros, oeste do Irã), e data de 3 400-3 000 a.C. Esse dado foi obtido por nosso laboratório. Mas desenhos de provável consumo de cerveja com canudinhos são anteriores a esse período e, presumivelmente com a domesticação da cevada, a cerveja já era feita ainda antes disso. A própria existência da cerveja deve ter contribuído para o processo de domesticação.

Quando e onde se produziu vinho pela primeira vez no Novo Mundo?

Essa é uma questão ainda em aberto. Aparentemente, a profusão de uvas na América do Norte não era explorada para a produção de vinho pelos nativos antigos. Suspeito que outras frutas ricas em açúcar estavam sendo exploradas em algum outro canto do hemisfério. Mas precisamos pesquisar mais esse tema.

Por que quase todas as culturas antigas produziam algum tipo de vinho? O que havia de tão especial nessa bebida para essas pessoas?

O conteúdo alcoólico era crucial para o homem, visto que os efeitos de alteração da mente e medicinais devem tê-lo intrigado em todos os lugares do mundo, além de prolongar suas vidas. O próprio processo de fermentação, antes do advento da ciência, era algo também misterioso e “espiritual”.

As pessoas associam o vinho mais a algumas culturas antigas, como a grega e a romana, e menos a outras, como o egípcios e os sumérios. Essa visão é correta?

Todas as culturas reservavam um papel especial ao vinho. Algumas eram capazes de produzi-lo de mais maneira mais fácil (nas terras montanhosas). Por isso, os grãos usados na produção de cerveja podiam algumas vezes ser cultivados nas áreas de terra baixa. Mas o vinho era uma commodity de qualidade superior, com significados especiais para a religião e os funerais no Egito e na Mesopotâmia.

Existem muitos sítios arqueológicos indiscutivelmente associados a sociedades que bebiam vinho?

Dependendo do período analisado, quase todos os sítios arqueológicos do Oriente Médio e do sul da Europa podem ser vistos como tendo algum artefato relacionado ao vinho, se não para a produção da bebida, pelo menos para seu consumo, como demonstram as ânforas.

O senhor poderia explicar como a chamada química arqueológica e as análises de DNA ajudam os estudiosos a desvendar as origens do vinho e de outras bebidas fermentadas?

Analisando resíduos antigos, podemos obter evidência contemporânea de vinho dentro de antigos recipientes, ao lado de aditivos, como resinas de árvores, ervas, figos etc. As análises de DNA são importantes em particular para estabelecer as relações entre os diferentes cultivares (variedades de uvas) e devem eventualmente levar a uma determinação quando e onde a vinha silvestre foi primeiramente domesticada.

Que tipo de informação a ciência não pode nos contar sobre o vinho da antiguidade? Por exemplo, é possível saber que tipo de uva, se branca ou tinta, era usada para a produção de um determinado vinho? Ou saber se um vinho antigo era doce ou seco? Recentemente, saiu uma notícia de que Tutankamon (faraó egípcio que governou entre 1333 a. C. e 1323 a.C.), bebia tanto vinho tinto como branco …

A descoberta de que Tutankamon bebia vinho branco e tinto foi um feito e tanto, visto que agora existem análises que conseguem estabelecer se havia ou pigmentos vermelhos num resíduo antigo. O açúcar, infelizmente, se quebra rapidamente e não podemos dizer muito sobre o grau de doçura dos vinhos antigos do ponto de vista químico. Mas novas técnicas nos permitem descobrir outras coisas, em especial a existência de aditivos nos vinhos, como ervas misturadas a uma solução, às vezes com efeitos medicinais.

Em todo lugar, apenas o ácido tartárico representa a assinatura química de que havia vinho num recipiente ou há algum outro indicador?

No Oriente Médio, além do ácido tartárico, a presença de resinas de árvores é um indicador secundário da existência de vinho.

Qual é, a seu ver, o maior mistério associado à história antiga do vinho?

Para mim, o maior mistério é saber por que o homem tem tanta inclinação, aptidão, para fabricar e consumir bebidas alcoólicas. Essa questão coloca em destaque o fato de que a cultura humana não existiria se não estivesse associada ao vinho, apesar de todos os problemas associados ao consumo exagerado de bebida.

O senhor bebe vinho (e cerveja) com regularidade?

Sim, eles são alguns dos grandes prazeres da vida. E fazem bem a você se consumidos com moderação.

*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de setembro de 2006 do jornal Bon Vivant

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