Duas civilizações distintas
Num ótimo livro, o geógrafo francês Jean Robert-Pitte desnuda as diferenças de Bordeaux e da Bourgogne
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
28/04/2006
Muito antes de a concorrência entre vinhos do Velho e do Novo Mundo se tornar um dos temas mais debatidos entre os amantes de tintos e brancos nas duas últimas décadas, uma rivalidade franco-francesa, como diriam os próprios gauleses, animava (e ainda anima) boa parte das querelas báquicas: quem faz os melhores rótulos do mundo, Bordeaux ou Borgonha? Um livro lançado na França em agosto do ano passado pela editora Hachette, e ainda sem tradução para o português, retoma com maestria, bom humor e espírito renovado essa histórica competição entre as duas mais renomadas regiões vitícolas do planeta.
Nas cerca de 250 páginas de Bordeaux Bourgogne: Les passions rivales, o geógrafo Jean-Robert Pitte, reitor da Universidade Paris IV, a famosa Sorbonne, descreve e confronta as principais características dessas “duas civilizações que se opõem”: a protestante Bordeaux, com seus tintos e brancos oriundos de cortes, de misturas de duas ou mais uvas (Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc e Merlot para os tintos, e Sémillon e Sauvignon Blanc para os brancos); e a católica Borgonha, com seus vinhos feitos a partir de apenas uma casta (Pinot Noir para os tintos e Chardonnay para os brancos). O alto cargo acadêmico do autor da obra não deve intimidar o leitor. Pitte escreve com a leveza de um cronista e a profundidade de um estudioso. Especialista em gastronomia e vinhos, com várias obras publicadas sobre as tentações da mesa e do copo (em português, há o título da editora LPM Gastronomia Francesa), o geógrafo, hoje com 56 anos, conhece bem não só os vinhos das duas regiões, mas os homens que o fazem. Durante quatro anos, na juventude, foi até mesmo vinhateiro na Borgonha.
Apesar de não esconder sua afeição pela terra que o iniciou no universo do vinho, Pitte passeia de uma região à outra de forma equidistante. Ao tratar da disputa entre esses dois famosos pólos da viticultura, que há pelos 18 séculos se dedicam à vinha, quase sempre ignorando ou desmerecendo o trabalho alheio, o autor mergulha nos homens que fazem e consomem os Bordeaux e os Borgonhas. Homens bastante distintos, como ele realça em todo o livro. E são as diferenças (e as escolhas) humanas, mais do que as particularidades do meio físico, que fazem, segundo o especialista, um Romanée-Conti ser tão diverso de um Château Margaux.
Paradoxalmente para um geográfo, Pitte não acredita em determinismo geográfico no cultivo da vinha. Ele, é claro, defende o conceito de que é preciso bons terroirs (conjunção de solo e clima minimamente adequados para a viticultura) para produzir bons vinhos. Mas também deixa claro – e esse talvez seja um dos pontos mais interessantes do livro – que os terroirs são freqüentemente melhorados pela mão do homem. Não são simplesmente dávidas da natureza. E quem labora mais, ou tem mais dinheiro para investir em sua propriedade, acaba tendo um melhor terroir e, quase sempre, um melhor vinho.
Para ilustrar essa tese, Pitte cita alguns exemplos que desmontam o belo discurso naturalista de muitos produtores e consumidores. Lembra, por exemplo, que parte das pedras do mítico vinhedo Romanée-Conti, na Borgonha, são originárias do próprio local e que parte foi trazida de outros lugares. Salienta que, tanto na Borgonha como em Bordeaux, os aportes de terra aos vinhedos foram atos comuns no passado, recente e remoto, e que continuam sendo feitos até hoje. No começo do século 19, mil carroças de terras deixavam todo ano o seu conteúdo pelos domínios do Château Lator e mais ou menos a mesma quantidade era levada ao Château Lafite, duas propriedades que ocupam o degrau mais alto da hierarquia bordalesa. “É preciso portanto aceitar a idéia de os solos dos grands crus é uma mistura indissociável de natureza original e de transformações antrópicas, incluindo o aporte externo, e que não há nenhum motivo para ocultar isso – desde que o vinho seja bom”, escreve o estudioso.
Em meados de fevereiro, enquanto eclodiam grandes manifestações de estudantes contra mudanças na política de emprego para os jovens frances, que redundaram em sérios estragos à sua Sorbonne, Pittte aceitou responder por email a algumas perguntas sobre o seu livro e suas idéias. Eis as respostas do autor, um nome que deve ser incluído entre os bons pensadores da gastronomia:
JV – “Há mais história que geografia numa garrafa de vinho.” Essa frase de Jean Kressman (finado dono do Château Latour-Martillac, de Bordeaux), que o senhor cita no livro, resume, a meu ver, o espírito provocador de sua obra: o vinho é mais um produto do homem, da sociedade em que ele nasce, que da natureza. O marketing do vinho sempre tenta nos convencer de justamente o contrário. Por que a (falsa) supremacia da natureza se impôs no mundo do vinho?
Pitte – O vinho é um maravilhoso resumo da relação que a humanidade mantém com o ambiente terrestre. Só podemos produzir bom vinho em regiões com um mínimo de insolação e um solo pedregoso com boa drenagem. Mas isso não é absolutamente suficiente (para produzir bom vinho). É preciso amansar o meio, domesticar uma planta rebelde e caprichosa, a vinha, guiá-la para que dê as melhores uvas possíveis, extrair dela a melhor matéria-prima, conduzir o complexo processo da fermentação, amadurecer o vinho e, enfim, saber bebê-lo. O terroir é um sábio casamento do ambiente, do talento vitivinícola, e da demanda de amantes esclarecidos que aceitam pagar o preço da qualidade.
JV – Qual é a melhor definição da oposição entre Bordeaux e Borgonha?
Pitte – Um (o borgonha) é um vinho camponês, produzido nos confins dos limites setentrionais da viticultura, num vinhedo muito fragmentado. Seus vinhos são feitos com uma cepa (Chardonnay para os brancos e Pinot Noir para os tintos), são perfumados e sensuais, mesmo quando jovens. São tradicionalmente consumidos na França interior, em Paris e na Europa católica. O Bordeaux é um vinho mais burguês, meridional, cujos grands crus saem de vastas propriedades de um único dono que pratica o assemblage (corte, mistura) de vários lotes e de várias cepas. São tradicionalmente consumidos na Europa do Norte, de tradição protestante, o que explica em parte a escolha das cepas, o Cabernet Franc, em especial, e da vinificação que resulta em vinhos de meditação e mais austeros que os borgonhas.
JV – No livro, o senhor mostra que alguns terroirs considerados excepcionais não são 100% naturais. Esse tipo de constatação deve provocar reações pouco amistosas entre os produtores de vinhos e mesmo entre certos consumidores. A noção de terroir, sobre a qual se baseia a maior parte dos grandes vinhos franceses, e mesmo dos grandes vinhos do mundo, é uma mentira, uma fraude?
Pitte – Não há nenhuma fraude nisso, mas é importante saber que o papel dos vinhateiros e dos consumidores é infinitamente mais relevante que o dos terroirs físicos (solo e clima). Os proprietários (de vinhedos) não gostam de ouvir essa afirmação porque têm a impressão de que estamos questionando a legitimidade de seu capital. Apesar disso, é preciso reconhecer que os grandes vinhos são produzidos em terroirs físicos cuidadosamente selecionados, estudados e conservados. Existe por toda a França e no mundo terroirs com alto potencial vitícola. Tudo o que eles pedem é ser valorizados, como o Mâconnais e o Agenais (subregiões, respectivamente, da Borgonha e da Aquitânia, onde fica Bordeaux, sem grande prestígio no mundo do vinho)
JV – Se, como o senhor diz no livro, as principais cepas tintas da Borgonha e de Bordeaux são mais ou menos intercambiáveis, por que os viticultores da primeira região nunca plantaram Cabernet Sauvigon ou Merlot e os da segunda região nunca plantaram Pinot Noir?
Pitte – Por razões ligadas ao gosto de sua clientela. Essa é a hipótese que sustento com um certo número de argumentos históricos que dizem respeito ao gosto dos consumidores.
JV – O senhor diz que o cliente faz o vinho. Visto que o consumo da bebida diminui em boa parte da Europa, mas aumenta em novos mercados, como os Estados Unidos e a China, podemos então concluir que o “vinho moderno” será feito cada vez mais ao estilo Novo Mundo, de varietais concentrados?
Pitte – Não. Os vinhos varietais são vinhos para iniciantes. Quanto mais bebemos, melhor bebemos, mais apreciamos a complexidade e as nuances. E essas características somente aparecem em vinhos de terroirs produzidos a partir de vinhedos com baixos rendimentos.
JV – Qual é o futuro do vinho francês frente à forte concorrência internacional?
Pitte – Ele vai durar muito – desde que os franceses mantenham a diversidade de seus vinhos de terroirs e uma relação qualidade-preço competitiva.
JV – A questão inevitável e não muito original: qual vinho o senhor prefere, Bordeaux ou Borgonha? A propósito, o senhor nasceu na Borgonha?
Pitte – Nasci em Paris e tomei gosto pelo vinho na Borgonha. Ainda assim, a essa questão, respondo como Jean-Anthelme Brillat-Savarin (famoso gastrônomo francês que viveu entre o final do século 18 e início do 19, autor do clássico Fisiologia do Gosto, de 1825): esse é um processo no qual gosto de sempre rever as partes antes de dar a minha sentença.
JV – O senhor já experimentou vinhos brasileiros ? Acredita que a viticultura tropical, como a do Nordeste brasileiro, pode render vinhos de qualidade?
Pitte – Bebi uma ou duas vezes vinhos do Rio Grande do Sul, com muito prazer. As técnicas atuais permitem produzir bons vinhos em todo o mundo, no Canadá, na Índia, na China, no Japão, incluindo o Brasil e até mesmo na zona mais quente de seu país.
*Esta matéria foi originalmente publicada no edição de março de 2006 do jornal Bon Vivant
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