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Demarcando o terreno do Porto

Há 250 anos, depois de quase se perderam na esperteza da fraude, os portugueses tiveram uma idéia realmente inteligente e criaram a primeira zona de produção oficialmente delimitada

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

09/12/2006

Mapa mostrando a área demarcada no Douro (Foto: Divulgação)

No final do século XVII, vinhos portugueses licorosos, com bom teor alcoólico e não necessariamente doces como a imensa maioria dos atuais Portos, começaram a inundar a Inglaterra, beneficiados pelo embargo comercial decretado pela coroa britânica aos produtos franceses. Mais densos que os claretes de Bordeaux, os potentes e fortificados tintos do Douro conquistaram rapidamente fiéis consumidores na elite inglesa. Tanta sede pelo néctar duriense fez com que os lusos, lá pela década de 1730, não conseguissem mais atender a contento à crescente demanda pelo vinho do Porto. Num primeiro momento, os negociantes do Norte de Portugal resolveram o problema da forma mais fácil (e antiga): recorreram à fraude. No livro Uma breve história do Vinho (Editora Record), Rod Phillips, especialista em história do álcool e da alimentação da Carleton University (Canadá) e crítico de vinhos, resume as artimanhas usadas para batizar a bebida preferida da alta sociedade de Londres na primeira metade do século XVIII: “Eles começaram então a fabricar vinhos com uvas de safras inferiores e que não produziam o porto com a qualidade que os ingleses queriam. Para tornar seus produtos aceitáveis, os negociantes passaram a fazer mesclas, misturando vinhos de cor intensa com outros pálidos ou vinhos fortes com fracos. Além disso, acrescentavam açúcar e álcool para reforçar a doçura; colocavam frutas vermelhas para intensificar a cor; e adicionavam especiarias, como pimenta, gengibre e canela para dar mais sabor”.

É claro que a contrafação não tardou muito a ser descoberta – e os preços e as vendas do vinho português despencaram na Inglaterra. Em meados do século XVIII, no auge da crise econômica no Douro, a pipa do Porto era comercializada a um terço do valor que exibira duas décadas antes e a quantidade da bebida importada pelos britânicos era menos da metade do que fora no fim dos anos 1720. Para remediar uma esperteza, que estava levando à bancarrota a região vinícola do Douro, os portugueses tiveram uma idéia inteligente, pioneira no mundo do vinhos: estabelecer o limites geográfico do qual viria toda a uva autorizada para fabricação do Porto. Nascia assim, há 250 anos, em 10 de setembro de 1756, por meio de um alvará régio assinado pelo rei D. José I, e sob os auspícios de seu primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal, a primeira região vinícola oficialmente demarcada. Na ocasião, os contornos da zona reservada à produção das vinhas empregadas na fabricação do Porto, composta de terras pré-cambrianas, ricas em xisto, às margens de um determinado trecho do rio Douro, foi sinalizada com 335 marcos de pedra. Os vinhos eram feitos na área delimitada e transportados de barco rio abaixo para serem estocados em Vila Nova de Gaia, localidade situada em frente à cidade do Porto, na margem oposto do Douro, de onde partiam todas das remessas para exportação.

A legislação que criou a área de origem do Porto também instituiu a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, na época encarregada de zelar pela qualidade dos vinhos do Douro, fiscalizando desde a produção até a comercialização do produto, sobretudo dos fortificados destinados à exportação. A delimitação de uma zona específica para produção do Porto serviu de inspiração para iniciativas semelhantes em outras partes da Europa, tendo sido precursora do sistema francês AOC (Appellation d’Origine Contrôlée) que só tomaria forma na década de 1930. Em 2001, a Unesco, o órgão das Nações Unidas dedicado à cultura, reconheceu como patrimônio da humanidade a área demarcada do Douro, que hoje compreende cerca de 250 mil hectares, dos quais 38,5 mil cobertos com vinhas. A zona de produção se inicia pouco antes da localidade de Peso da Régua, localizada a menos de 100 quilômetros a leste da cidade do Porto, e se estende até a fronteira com a Espanha, onde o Douro vira Duero.

Não se deve confundir as comemorações dos 250 anos da delimitação oficial da zona de produção do Porto com a própria origem da bebida. O fortificado português é, obviamente, mais antigo que o alvará de D. José I. Tem, mais ou menos nos moldes como o conhecemos hoje, pelo menos uns 340 anos de vida, mas a viticultura é praticada no Douro há dois milênios. No passado, a adição de aguardente vínica ao vinho era um expediente destinado a dotar os fermentados do Douro de estrutura (alcoólica) suficiente para agüentar sua longa jornada rumo ao mercados consumidores fora de Portugal. Com o tempo, tal manobra virou a marca-registrada do Porto, um vinho licoroso que deve sua doçura ao fato de sua fermentação – transformação dos açúcares em álcool pela ação de leveduras – ser interrompida antes de seu término pelo despejo da aguardente no mosto (suco) de uva. Dessa forma, sobra um pouco de açúcar natural da uva no mosto.

A despeito da existência de exemplares brancos e não-doces, quase todos os vinhos do Porto têm alguns pontos em comum: o teor alcoólico em torno dos 20° graus, a doçura e a cor tinta. Mas falar, genericamente, de um tipo de Porto implica certo reducionismo. Isso porque trata-se de um vinho fortificado com uma ampla gama de estilos. A maioria dos Portos, em especial os mais simples, é composta de uma mistura de vinhos provenientes de várias colheitas e envelhecidos por dois ou três anos em garrafas (os do tipo Ruby, mais frutados ) ou em madeira (os do tipo Tawny, aloirados, com menos cor). Mas há uma série de outros estilos, intermediários entre os dois citados, com personalidade própria ou maior tempo de envelhecimento. O ápice entre os vinhos do Porto são os do tipo Vintage, tintos densos, com passagem em madeira, mas feitos com uvas de apenas uma safra, desde que ela tenha sido excepcional. Podem durar décadas e custam caro. Hoje em dia está na moda os ainda mais seletos Vintages feitos com uvas provenientes dos vinhedos de apenas uma quinta. Há ainda Portos do tipo LBV, também safrados, do tipo Colheita, do tipo Vintage Character, entre outros.

São tantas as variações de estilo que os especialistas não chegam nem mesmo à conclusão se o Porto é para ser tomado antes ou depois do repasto. Há quem, é claro, recomende-o em ambos os momentos. “Ele pode ser servido como aperitivo ou como o vinho de sobremesa”, recomenda o enófilo Carlos Cabral, um dos maiores entendidos no assunto e que lançou recentemente um livro contanto a história do Porto por meio de seus rótulos (veja texto). “Pode ser o abre-alas e o grand finale da refeição.” Embora a história do vinho do Porto esteja intimamente associada à Inglaterra, os súditos da rainha Elizabeth não são atualmente os maiores bebedores do produto. Segundo dados do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP), o primeiro mercado consumidor é a França, que, nos sete primeiros meses de 2006, abocanhou 32,8% da produção do vinho fortificado. Em seguida, vieram a Holanda (17,4%), a Bélgica (13%) e o próprio Portugal (12,2%). O Reino Unido apareceu apenas na quinta posição (6,3%). O Brasil, que já foi um maiores mercados consumidores do produto em razão de laços culturais e privilégios tarifários, hoje ocupa a décima-primeira posição (1%). A produção anual de vinho do Porto gira em torno de 90 milhões de litros. Antes ou depois do próximo jantar de sábado, que tal fazermos como os franceses, que, apesar de terem à mão tantos excelentes vinhos gauleses, ainda encontram alegria no Porto?

*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de outubro de 2006 do jornal Bon Vivant

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